Sobre o excerto do Texto de Gilles Deleuze, “Logique du Sens”, “Platon et le Simulacre”, de 1969 ou Imagem vs CaosDeleuze lança ao leitor uma perspectiva nietszschiana, a da “reversão do platonismo” como mote para discussão da preconizada tarefa futura da Filosofia: a abolição do mundo das essências e do mundo das aparências.Tal desafio apresenta, se encarado em termos conceptuais e por isso abstractos, a sua própria morte, pelo punhal de Platão, já que se edifica à sua sombra. É proposta então uma lógica de desmantelamento não pela afirmação de uma concepção, mas pelo aniquilamento, encurralamento da outra, à semelhança do método socrático perante o sofista. Deste modo, é posta em causa toda a teoria das Ideias como mecanismo de filtragem, sob a ameaça de modelo e simulacro serem semelhantes.Primeiramente, há que analisar o método de divisão platónico, já que é neste momento que todo o platonismo se manifesta: constituído por uma dialéctica única, que funde a potência dialéctica com uma outra potência que legitima o englobar de um sistema. Assim, a dicotomização de espécies estipuladas permite encontrar a espécie ideal, processo complexificado através do reconhecimento de linhagens que tornam a atribuição de contrários como Bem e Mal, puro e impuro, viável, servindo-se abundantemente da metáfora, mecanismo de divisão que afunila a reflexão até a uma prova final entre rivais, amphisbetesis, não por uma enumeração prolixa das espécies, mas por um desbravamento em profundidade das linhagens focadas, até discernir o falso do verdadeiro.A utilização do mito e da alegoria aparenta uma fuga dialéctica, um contornar da questão, quando na verdade se revelam armas nesta desconstrução, de modo a “reunir em si a potência dialéctica e a potência mítica”, num esforço de criação de fundamento, uma batuta normativa, de que é exemplo a circulação de almas na obra Fedro. Tal concepção permite-nos decalcar uma tríade: fundamento (pai), objecto da pretensão (filha) e pretendente (noivo); imparticipável, participado e participante. Tomemos por exemplo: a Justiça (Essência, pai, fundamento) atribui a qualidade de Justo (filha, pretensão) aos que a reclama, que nela participam (noivo, pretendente). A hierarquia é fixa e apenas no papel de noivo, pretendente, há espaço para uma atribuição de graus, desde o que pretende a qualidade como ela é até aquele que almeja uma miragem da qualidade, degenerando até ao que saliva pelo simulacro deturpado em toda a sua potência e encarna o falso pretendente em todo o seu esplendor.Em Sofista, Platão não dispõe de nenhum mito fundador que instaure uma qualquer definição do real e do verdadeiro noivo, aplicando um método de divisão “negativo”, já que em vez de estabelecer um fundamento que autentifique os verdadeiros, ocupa-se da própria natureza do simulacro e os que nele habitam, surgindo neste encurralar “a mais extraordinária aventura do platonismo”, o indagar sobre a própria natureza da cópia, modelo e fundamento: o próprio Sócrates profere, em conversação com o Sofista, as palavras que revelam as fragilidades do platonismo, Platão indica inesperada e perturbadoramente as suas próprias feridas.A hierarquia platónica dogmatiza os binómios Inteligível/Sensível e Ideia/Imagem em prol de um discernimento entre dois tipos de Imagem: as cópias, pretendentes legítimos devido a uma visão e procura da qualidade assemelhada à Essência, e os simulacros, que pervertem a qualidade. Às primeiras imagens-ídolos, as cópias-ícones, está destinado um reconhecimento e elevação, num mundo em que as essências se tornam apreensíveis e do qual provém todo o homem. As segundas não têm a mesma sorte: sobre elas recairá a condenação interminável, uma ostracização que previne a sua insinuação e disseminação. O critério é a semelhança pretendente/fundamento, por via da pretensão, é a dimensão da qualidade pretendida enquanto semelhante à Ideia e a forma como esta é molde para a construção interior e espiritual do sujeito.Os simulacros são assim fruto de uma não-semelhança e consequente desequilíbrio interno, gerando uma cópia degradada, não possuidora da qualidade em segundo lugar (já que o primeiro é, irrevogavelmente, do pai, a Ideia). O Catecismo consuma esta noção através da transformação operada no Homem, de cópia a simulacro, através do pecado, contribuindo para a demonização do último e condenando o Homem a ser que experiencia apenas simulacro, condenado a almejar um modelo deturpado ou simplesmente inexistente, mas passível de ser salvo, aspirar a ser mais que simulação, vivendo a vida segundo a cópia que o Cristianismo estabeleceu como melhor representante da qualidade e deste modo alcançar a Ideia e o paraíso, a unificação.Tomemos a trindade platónica: usuário, produtor e imitador, enfatizando-se a capacidade de o primeiro efectuar juízos por possuir um saber real; o segundo ser bem-amado pelo primeiro através da produção de cópias segundo os ditames da essência e o terceiro, o imitador, como embuído de um sentido pejorativo derivado da simulação da qual ele mesmo faz parte, por não conhecer um verdadeiro saber e opinião, enclausurado num simulacro que o ilude e do qual deve ser salvo, salvação essa prometida pela Filosofia que Platão planifica e o Cristianismo adapta às suas exigências especulativas.A compossibilidade de Leibniz propõe uma sistematização de pontos convergentes que se expandem e criam novos pontos, numa infinidade de mundos, acabando, contudo, por admitir a existência de um desses mundos como mais bem fundado, onde mais pontos convergirão, condenando a tentativa de reversão do platonismo ao fracasso. Procedimento semelhante teve Hegel em relação à dialéctica.A estética assume-se paradoxal: dita, por um lado, a hegemonia do sensível e, por outro, a primazia da reflexão como experimentação do real. A polissemia que caracteriza a Arte Moderna reflecte esta possível dimensão igual, simétrica, entre o divergente e o convergente, entre a heterogeneidade e unicidade, ou mesmo o domínio da primeira em relação à segunda, a vitória do Caos sobre a Ordem, do simulacro sobre a cópia, por uma complexificação do Real que o torna injustificável e descentrado ou simplesmente nunca existente. É o reino do Sinal-Signo como veículo de comunicação neste Caos. Esta visão de que só as diferenças se parecem assenta numa concepção do mundo em que a disparidade se assume como o fundamento, aniquilando a visão de que só o que se parece difere, esta unitária, levando ao negar da cópia e à coroação do simulacro e a diferença como referência e medida. Nada resiste, pois tudo é fantasma, nada é hierarquizável, tudo é falso pretendente, num Pseudos infindável em que a anarquia é a única justificação e o mote é o explorar das cavernas por ausência de superfície. Cai por terra, deste modo, todo o pai, filha e noivo, fundamento, pretensão e pretendente, juntando Sócrates e Platão à matança e levando consigo toda a concepção da Imagem e Representação sob a qual se edificou a sociedade Ocidental. Esta é, na Modernidade, a mais titânica das batalhas.
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quarta-feira, 1 de abril de 2009