PLATÃO E O SIMULACRO DELEUZE, Gilles.( Lógica do sentido. 4ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. pp. 259-271 (Estudos)) Que significa “reversão do platonismo”? Nietzsche assim define a tarefa de sua filosofia ou, mais geralmente, a tarefa da filosofia do futuro. Parece que a fórmula quer dizer: a abolição do mundo das essências e do mundo das aparências. Tal projeto, todavia, não seria próprio a Nietzsche. A dupla recusa das essências e das aparências remonta a Hegel e, melhor ainda, a Kant. É duvidoso que Nietzsche pretenda dizer a mesma coisa. Bem mais, tal fórmula – “reversão” – tem o inconveniente de ser abstrata; ela deixa na sombra a motivação do platonismo. Reverter o platonismo deve significar, ao contrário, tornar manifesta à luz do dia esta motivação, “encurralar” esta motivação – assim como Platão encurrala o sofista.
Em termos muito gerais, o motivo da teoria das Idéias deve ser buscado do lado de uma vontade de selecionar, de filtrar. Trata-se de fazer a diferença. Distinguir a “coisa” mesma e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro. Mas estas expressões todas serão equivalentes? O projeto platônico só nos aparece verdadeiramente quando nos reportamos ao método da divisão. Pois este método não é um movimento dialético entre outros. Ele reúne toda a potência da dialética, para fundi-la com uma outra potência e representa, assim, todo o sistema. Dirse-ia primeiro que ele consiste em dividir um gênero em espécies contrárias para subsumir a coisa buscada sob a espécie adequada: assim o processo da especificação continuada na busca de uma definição da pesca. Mas este é apenas o aspecto superficial da divisão, seu aspecto irônico. Se tomássemos a sério este aspecto, a objeção de Aristóteles procederia plenamente: a divisão seria um mau silogismo, ilegítimo, pois que faltaria um termo médio capaz, por exemplo, de nos fazer concluir que a pesca esta do lado das artes de aquisição e de aquisição por captura etc.
O objetivo real deve ser buscado alhures. No Político, chegamos a uma primeira definição: o político é o pastor dos homens. Mas toda a espécie rivais surge, o médico, o comerciante, o trabalhador, para dizer: “O pastor dos homens sou eu”. No Fedro trata-se de definir o delírio e precisamente de distinguir o delírio bem fundado ou o verdadeiro amor. Ai também muitos pretendentes surgem para dizer: “O inspirado, o amante, sou eu”. O objetivo da divisão não é, pois, em absoluto, dividir um gênero em espécies, mas, mais profundamente, selecionar linhagens: distinguir os pretendentes, distinguir o puro e o impuro, o autêntico e o inautêntico. De onde a metáfora constante, que aproxima a divisão da prova de ouro. O platonismo é a Odisséia filosófica; a dialética platônica não é uma dialética da contradição nem da contrariedade, mas uma dialética da rivalidade (amphisbetesis), uma dialética dos rivais ou dos pretendentes. A essência da divisão não aparece em largura, na determinação das espécies de um gênero, mas em profundidade, na seleção da linhagem. Filtrar as pretensões, distinguir o verdadeiro pretendente dos falsos.
Para realizar este objetivo Platão procede uma vez mais com ironia. Pois, quando a divisão chega a esta verdadeira tarefa seletiva, tudo se passa como se ela renunciasse em cumpri-la e se deixasse substituir por um mito. Assim, no Fedro, o mito da circulação das almas parece interromper o esforço da divisão; da mesma forma, no Político, o mito dos tempos arcaicos. Tal é a segunda armadilha da divisão, sua segunda ironia, esta escapada, esta aparência de escapada ou de renúncia. Pois na realidade, o mito não interrompe nada; ele é, ao contrário, elemento integrante da própria divisão. É próprio da divisão ultrapassar a dualidade entre o mito e a dialética e reunir em si a potência dialética e a potência mítica. O mito, com sua estrutura sempre circular, é realmente a narrativa de uma fundação. É ele que permite erigir um modelo segundo o qual os diferentes pretendentes poderão ser julgados. O que deve ser fundado, com efeito, é sempre uma pretensão. É o pretendente que faz apelo a um fundamento e cuja pretensão se acha bem fundada ou mal fundada, não fundada. Assim, no Fedro, o mito da circulação expõe o que as almas puderam ver das Idéias antes da encarnação: por isso mesmo nos dá um critério seletivo segundo o qual o delírio bem fundado ou o amor verdadeiro pertence às almas que viram muito e que têm muitas lembranças adormecidas, mas ressuscitáveis – as almas sensuais, de fraca memória e de vista curta, são, ao contrário, denunciadas como falsos pretendentes. O mesmo ocorre no Político: o mito circular mostra que a definição do político como “pastor dos homens” não convém literalmente senão ao deus arcaico; mas um critério de seleção daí se destaca, de acordo com o qual os diferentes homens da Cidade participam desigualmente do modelo mítico. Em suma, uma participação eletiva responde ao problema do método seletivo.
Participar é, na melhor das hipóteses, ter em segundo lugar. De onde a célebre tríade neoplatônica: o imparticipável, o participado, o participante. Dir-se-ia também: o fundamento, o objeto da pretensão, o pretendente; o pai, a filha e o noivo. O fundamento é o que possui alguma coisa em primeiro lugar, mas que lhe dá a participar, que lhe dá ao pretendente, possuidor em segundo lugar, na medida em que soube passar pela prova do fundamento. O participado é o que o imparticipável possui em primeiro lugar. O imparticipável dá a participar, ele dá o participado aos participantes: a justiça, a qualidade de justo, os justos. E é preciso distinguir, sem dúvida, todo um conjunto de graus, toda uma hierarquia, nesta participação eletiva: não haveria um possuidor em terceiro lugar, em quarto etc., até o infinito de uma degradação, até àquele que não possui mais do que um simulacro, uma miragem, ele próprio miragem e simulacro? O Político distingue em detalhe: o verdadeiro político ou o pretendente bem fundado, depois parentes, auxiliares, escravos, até aos simulacros e contrafacções. A maldição pesa sobre estes últimos; eles encarnam a má potência do falso pretendente.
Assim o mito constrói o modelo imanente ou fundamento-prova de acordo com o qual os pretendentes devem ser julgados e sua pretensão medida. E é sob esta condição que a divisão prossegue e atinge seu fim, que é não a especificação do conceito mas a autenticação da idéia, não a determinação da espécie, mas a seleção da linhagem. Como explicar, contudo, que, dos três grandes textos sobre a divisão, o Fedro, o Político e o Sofista, não apresente este último nenhum mito fundador? A razão disso é simples. É que, no Sofista, o método de divisão é paradoxalmente empregado não para avaliar os justos pretendentes, mas ao contrário para encurralar o falso pretendente como tal, para definir o ser (ou antes o não-ser) do simulacro. O próprio sofista é o ser do simulacro, o sátiro ou centauro, o Proteu que se imiscui e se insinua por toda parte. Mas, neste sentido, é possível que o fim do Sofista contenha a mais extraordinária aventura do platonismo: à força de buscar do lado do simulacro e de se debruçar sobre seu abismo, Platão, no clarão de um instante, descobre que não é simplesmente uma falsa cópia, mas que põe em questão as próprias noções de cópia... e de modelo. A definição final do sofista nos leva a um ponto em que não mais podemos distingui-lo do próprio Sócrates: o ironista operando, em conversas privadas, por meio de argumentos breves. Não seria necessário mesmo levar a ironia até ali? E também que tivesse sido Platão o primeiro a indicar esta direção da reversão do platonismo?
Partiríamos de uma primeira determinação do motivo platônico: distinguir a essência e a aparência, o inteligível e o sensível, a Idéia e a imagem, o original e a cópia, o modelo e o simulacro. Mas já vemos que estas expressões não são equivalentes. A distinção se descola entre duas espécies de imagens. As cópias são possuidoras em segundo lugar, pretendentes bem fundados, garantidos pela semelhança; os simulacros são como os falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude, implicando uma perversão, um desvio essenciais. É neste sentido que Platão divide em dois o domínio das imagens-ídolos: de um lado, as cópias-ícones, de outro os simulacros-fantasmas . Podemos então definir melhor o conjunto da motivação platônica: trata-se de selecionar os pretendentes, distinguindo as boas e as más cópias ou antes as cópias sempre bem fundadas e os simulacros sempre submersos na dessemelhança. Trata-se de assegurar o triunfo das cópias sobre os simulacros, de recalcar os simulacros, de mantê-los encadeados no fundo, de impedi-los de subir à superfície e de se "insinuar" por toda parte.
A grande dualidade manifesta, a Idéia e a imagem, não está aí senão com este objetivo: assegurar a distinção latente entre as duas espécies de imagens, dar um critério concreto. Pois, se as cópias ou ícones são boas imagens e bem fundadas, é porque são dotadas se semelhança. Mas a semelhança não deve ser entendida como uma relação exterior: ela vai menos de uma coisa a outra do que de uma coisa a uma Idéia, uma vez que é a Idéia que compreende as relações e proporções constitutivas da essência interna. Interior e espiritual, a semelhança é a medida de uma pretensão: a copia não parece verdadeiramente a alguma coisa senão na medida em que parece à Idéia da coisa. O pretendente não é conforme ao objeto senão na medida em que se modela (interiormente e espiritualmente) sobre a Idéia. Ele não merece a qualidade (por exemplo, a qualidade de justo) senão na medida em que se funda sobre a essência ( a justiça). Em suma, é a identidade superior da Idéia que funda a boa pretensão das cópias e funda-a sobre uma semelhança interna ou derivada. Consideremos agora a outra espécie de imagens, os simulacros: aquilo a que pretendem, o objeto, a qualidade etc., pretendem-no por baixo do pano, graças a uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão, “contra o pai” e sem passar pela Idéia . Pretensão não fundada, que recobre uma dessemelhança assim como um desequilíbrio interno.
Se dizemos do simulacro que é uma cópia de cópia, um ícone infinitamente degradado, uma semelhança infinitamente afrouxada, passamos à margem do essencial: a diferença de natureza entre o simulacro e cópia, o aspecto pelo qual formam as duas metades de uma divisão. A cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro, uma imagem sem semelhança. O catecismo, tão inspirado no platonismo, familiarizou-nos com esta noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança embora conservasse a imagem. Tornamo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética. A observação do catecismo tem a vantagem de enfatizar o caráter demoníaco do simulacro. Sem dúvida, ele produz ainda um efeito de semelhança; mas é um efeito de conjunto, exterior, e produzido por meios completamente diferentes daqueles que se acham em ação no modelo. O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. Eis por que não podemos nem mesmo defini-lo com relação ao modelo que se impõe às cópias, modelo do Mesmo do qual deriva a semelhança das cópias. Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-se de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma dessemelhança interiorizada .
Seja a grande trindade platônica: o usuário, o produtor, o imitador. Se o usuário está no alto da hierarquia é porque julga sobre fins e dispõe de um verdadeiro saber que é o do modelo ou da Idéia. A cópia poderia ser chamada de imitação na medida em que reproduz o modelo; contudo, como esta imitação é noética, espiritual e interior, ela é uma verdadeira produção que se regula em função das relações e proporções constitutivas da essência. Há sempre uma operação produtiva na boa cópia e, para corresponder a esta operação, uma opinião justa ou até mesmo um saber. Vemos, pois, que a imitação é determinada a tomar um sentido pejorativo na medida em que não consegue passar de uma simulação, que não se aplica senão ao simulacro e designa o efeito de semelhança somente exterior e improdutivo, obtido por ardil ou subversão. Lá não existe mais nem mesmo opinião justa, mas uma espécie de refrega irônica que faz as vezes de modo de conhecimento, uma arte da refrega exterior ao saber e à opinião . Platão precisa o modo como este efeito improdutivo é obtido: o simulacro implica grandes dimensões, profundidades e distâncias que o observador não pode dominar. É porque não as domina que ele experimenta uma impressão de semelhança. O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu ponto de vista . Em suma, há no simulacro um devir-louco, um devir ilimitado como o do Filebo em que o “mais e o menos vão sempre à frente”, um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. Impor um limite a este devir, ordená-lo ao mesmo, torná-lo semelhante – e, para a parte que permaneceria rebelde, recalcá-la o mais profundo possível, encerrá-la numa caverna no fundo do Oceano: tal é o objetivo do platonismo em sua vontade de fazer triunfar os ícones sobre os simulacros.
O platonismo funda assim todo o domínio que a filosofia reconhecerá como seu: o domínio da representação preenchido pelas cópias-ícones e definido não em uma relação extrínseca a um objeto, mas numa relação intrínseca ao modelo ou fundamento. O modelo platônico é o Mesmo: no sentido em que Platão diz que a Justiça não é nada além de justa, a Coragem, corajosa etc. – a determinação abstrata do fundamento como aquilo que possui em primeiro lugar. A cópia platônica é o Semelhante: o pretendente que recebe em segundo lugar. À identidade pura do modelo ou do original corresponde a similitude exemplar, à pura semelhança da cópia corresponde a similitude dita imitativa. Não se pode dizer, contudo, que o platonismo desenvolve ainda esta potência da representação por si mesma: ele se contenta em balizar o seu domínio, isto é, em fundá-lo, selecioná-lo, excluir dele tudo o que viria embaralhar seus limites. Mas o desdobrar da representação como bem fundada e limitada, como representação finita, é antes o objeto de Aristóteles: a representação percorre e cobre todo o domínio que vai dos mais altos gêneros às menores espécies e o método de divisão toma então seu procedimento tradicional de especificação que não tinha em Platão. Podemos designar um terceiro momento quando, sob a influência do Cristianismo, não se procura mais somente fundar a representação, torná-la possível, nem especificá-la ou determiná-la como finita, mas torná-la infinita, fazer valer para ela uma pretensão sobre o ilimitado, fazê-la conquistar o infinitamente grande assim como o infinitamente pequeno, abrindo-a sobre o Ser além dos gêneros maiores e sobre o singular aquém das menores espécies.
Leibniz e Hegel marcaram com seu gênio esta tentativa. Contudo, se ainda assim não saímos do elemento da representação é porque permanece a dupla exigência do Mesmo e do Semelhante. Simplesmente, o Mesmo encontrou um princípio incondicionado capaz de fazê-lo reinar no ilimitado: a razão suficiente; e o Semelhante encontrou uma condição capaz de aplicá-lo ao ilimitado: a convergência ou a continuidade. Com efeito, uma noção tão rica como a de compossibilidade, de Leibniz, significa que, sendo as mônadas assimiladas a pontos singulares, cada série que converge em torno de um destes pontos se prolonga em outras séries convergindo em torno de outros pontos; um outro mundo começa na vizinhança dos pontos que fariam divergir as séries obtidas. Vemos pois como Leibniz exclui a divergência distribuindo-a em “incompossíveis” e conservando o máximo de convergência ou de continuidade como critério do melhor mundo possível, isto é, do mundo real. ( Leibniz apresenta os outros mundos como “pretendentes” menos bem fundados.) Da mesma forma, para Hegel, mostrou-se recentemente até que ponto os círculos da dialética giravam em torno de um só centro, repousavam num só centro . Monocentragem dos círculos ou convergência da séries, a filosofia não deixa o elemento da representação quando parte à conquista do infinito. Sua embriaguez é fingida. Ela persegue sempre a mesma tarefa, Iconologia e adapta-a às exigências especulativas do Cristianismo (o infinitamente pequeno e o infinitamente grande). E sempre a seleção dos pretendentes, a exclusão do excêntrico e do divergente, em nome de uma finalidade superior, de uma realidade essencial ou mesmo de um sentido da história.
A estética sofre de uma dualidade dilacerante. Designa de um lado a teoria da sensibilidade como forma da experiência possível; de outro, a teoria da arte como reflexão da experiência real. Para que os dois sentidos se juntem é preciso que as próprias condições da experiência em geral se tornem condições da experiência real; a obra de arte, de seu lado aparece então realmente como experimentação. Sabe-se por exemplo que certos procedimentos literários (as outras artes têm equivalentes) permitem contar várias histórias ao mesmo tempo. Não há dúvida de que é este o caráter essencial da obra de arte moderna. Não se trata de forma nenhuma de pontos de vista diferentes sobre uma história que se supõe ser a mesma; pois os pontos de vista permanecem submetidos a uma regra de convergência. Trata-se, ao contrário, de histórias diferentes e divergentes, como se uma paisagem absolutamente distinta correspondesse a cada ponto de vista. Há realmente uma unidade das séries divergentes enquanto divergentes, mas é um caos sempre excentrado que se confunde ele próprio com a Grande Obra. Este caos informal, a grande letra de Finnegan’s wake não é qualquer caos: é potência de afirmação, potência de afirmar todas as séries heterogêneas, ele “complica” em si todas as séries (de onde o interesse que Joyce tem por Bruno, como teórico da complicatio). Entre estas séries de base se produz uma espécie de ressonância interna; esta ressonância induz um movimento forçado, que transborda das próprias séries. Todos estes caracteres são os do simulacro, quando rompe suas cadeias e sobe à superfície: afirma então sua potência de fantasma, sua potência recalcada. Lembrando-nos de que Freud já mostrava como o fantasma resulta de duas séries pelo menos, uma infantil e a outra pós-pubertária. A carga afetiva ligada ao fantasma explica-se pela ressonância interna da qual os simulacros são portadores e a impressão de morte, de ruptura ou de desmembramento da vida explica-se pela amplitude do movimento forçado que as arrasta. Reúnem-se assim as condições da experiência real e as estruturas da obra de arte: divergência das séries, descentramento do círculos, constituição do caos que os compreende, ressonância interna e movimento de amplitude, agressão dos simulacros .
Tais sistemas, constituídos pela colocação em comunicação de elementos díspares ou de séries heterogêneas, são bastante ordinários em um sentido. São sistemas sinal-signo. O sinal é uma estrutura em que se repartem diferenças de potencial e que assegura a comunicação dos díspares; o signo é o que fulgura entre os dois níveis da orla, entre as duas séries comunicantes. Parece realmente que todos os fenômenos respondem a estas condições na medida em que encontram sua razão em uma dissimetria, em uma diferença, uma desigualdade constitutivas: todos os sistemas físicos são sinais, todas as qualidades são signos. É verdade, todavia, que as séries que os bordejam permanecem exteriores; por isso mesmo, também as condições de sua reprodução permanecem exteriores aos fenômenos. Para falar de simulacro, é preciso que as séries heterogêneas sejam realmente interiorizadas no sistema, compreendidas ou complicadas no caos, é preciso que sua diferença seja incluída. Sem dúvida, há sempre uma semelhança entre séries que ressoam. Mas o problema não está aí, está antes no estatuto, na posição desta semelhança. Consideremos as duas fórmulas: “só o que se parece difere”, “somente as diferenças se parecem”. Trata-se de suas leituras do mundo, na medida em que uma nos convida a pensar a diferença a partir de uma similitude ou de uma identidade preliminar, enquanto a outra nos convida ao contrário a pensar a similitude e mesmo a identidade como o produto de uma disparidade de fundo. A primeira define exatamente o mundo das cópias ou das representações; coloca o mundo como ícone. A segunda, contra a primeira, define o mundo dos simulacros. Ela coloca o próprio mundo como fantasma. Ora, do ponto de vista desta segunda fórmula, importa pouco que a disparidade original, sobre a qual o simulacro é construído, seja grande ou pequena; ocorre que as séries de base não tenham senão uma pequena diferença. Basta, contudo, que a disparidade constituinte seja julgada nela mesma, não se prejulgue a partir de nenhuma identidade preliminar e que tenha o dispars como unidade de medida e de comunicação. Então a semelhança não pode ser pensada senão como o produto desta diferença interna. Importa pouco que o sistema seja de grande semelhança externa e pequena diferença interna, ou o contrário, a partir do momento em que a semelhança é produzida sobre a curva e que a diferença, pequena ou grande, ocupe o centro do sistema assim descentrado.
Reverter o platonismo significa então: fazer subir os simulacros, afirmar seus direitos entre os ícones ou as cópias. O problema não concerne mais à distinção Essência-Aparência, ou Modelo-cópia. Esta distinção opera no mundo da representação; trata-se de introduzir a subversão neste mundo, “crepúsculo dos ídolos”. O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução. Pelo menos das duas séries divergentes interiorizadas no simulacro, nenhuma pode ser designada como o original, nenhuma como cópia . Não basta nem mesmo invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo resiste à vertigem do simulacro. Não há mais ponto de vista privilegiado do que objeto comum a todos os pontos de vista. Não há mais hierarquia possível: nem segundo, nem terceiro... A semelhança subsiste, mas é produzida como o efeito exterior do simulacro, na medida em que se constrói sobre as séries divergentes e faz com que ressoem. A identidade subsiste, mas é produzida como a lei que complica todas as séries, faz com que todas voltem em cada uma no curso do movimento forçado. Na reversão do platonismo, é a semelhança que se diz da diferença interiorizada, e a identidade do Diferente como potência primeira. O mesmo e o semelhante não tem mais por essência senão ser simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro. Não há mais seleção possível. A obra não-hierarquizada é um condensado de coexistências, um simultâneo de acontecimentos. É o triunfo do falso pretendente. Ele simula tanto o pai como o pretendente e a noiva numa superposição de máscaras. Mas o falso pretendente não pode ser dito falso com relação a um modelo suposto de verdade, muito menos que a simulação não pode ser dita uma aparência, uma ilusão. A simulação é o próprio fantasma, isto é, o efeito do funcionamento do simulacro enquanto maquinaria, máquina dionisíaca. Trata-se do falso como potência, Pseudos, no sentido em que Nietzsche diz: a mais alta potência do falso. Subindo à superfície, o simulacro faz cair sob a potência do falso (fantasma) o Mesmo e o Semelhante, o modelo e a cópia. Ele torna impossível a ordem das participações, como a fixidez da distribuição e a determinação da hierarquia. Instaura o mundo das distribuições nômades e das anarquias coroadas. Longe de ser um novo fundamento, engole todo fundamento, assegura um universal desabamento (effondrement). Mas como acontecimento positivo e alegre, como effondement: “Atrás de cada caverna uma outra que se abre, mais profunda ainda e abaixo de cada superfície, um mundo subterrâneo mais vasto, mais estrangeiro, mais rico e sob todos os fundos, sob todas as fundações, um subsolo mais profundo ainda” . Como poderia Sócrates se reconhecer nestas cavernas que não são mais a sua? Com que fio, uma vez que o fio se perdeu? Como sairia daí e como poderia ainda ser distinguido do sofista?
Que o Mesmo e o Semelhante sejam simulados não significa que sejam aparências e ilusões. A simulação designa a potência para produzir um efeito. Mas não é somente no sentido causal, uma vez que a causalidade continuaria completamente hipotética e indeterminada sem a intervenção de outras significações. É no sentido de “signo”, saído de um processo de sinalização; e é no sentido de “costume” ou antes de máscara, exprimindo um processo de disfarce em que, atrás de cada máscara, aparece outra ainda... A simulação assim compreendida não é separável do eterno retorno; pois é no eterno retorno que se decidem a reversão dos ícones ou a subversão do mundo representativo. Aí, tudo se passa como se um conteúdo latente se opusesse ao conteúdo manifesto. O conteúdo manifesto do eterno retorno pode ser determinado conforme ao platonisno em geral: ele representa então a maneira pela qual o caos é organizado sob a ação do demiurgo e sobre o modelo da Idéia que lhe impõe o mesmo e o semelhante. O eterno retorno, neste sentido, é o devir-louco controlado, monocentrado, determinado a copiar o eterno. E é desta maneira que ele aparece no mito fundador. Ele instaura a cópia na imagem, subordina a imagem à semelhança. Mas, longe de representar a verdade do eterno retorno, este conteúdo manifesto marca antes sua utilização e sua sobrevivência mítica em uma ideologia que não o suporta mais e que perdeu o seu segredo. É justo lembrar quanto a alma grega em geral e o platonismo em particular repugnam ao eterno retorno tomado em sua significação latente . É preciso dar razão a Nietzsche quando trata o eterno retorno como sua própria idéia vertiginosa, que não se alimenta senão em fontes dionisíacas esotéricas, ignoradas ou recalcadas pelo platonismo. Certamente, as raras exposições que Nietzsche faz a respeito ficam no conteúdo manifesto: o eterno retorno como o Mesmo que faz voltar o Semelhante. Mas como não ver a desproporção entre esta trivial verdade natural, que não ultrapassa uma ordem generalizada das estações e a emoção de Zaratustra? Bem mais, a exposição manifesta não existe senão para ser refutada secamente por Zaratustra: uma vez para o anão, uma outra a seus animais, Zaratustra reprova-a por transformar em vacuidade algo que é singularmente profundo, em uma “cantilena” o que é de uma música diferente, em simplicidade circular o que é diferentemente tortuoso. No eterno retorno, é preciso passar pelo conteúdo manifesto, mas somente para atingir o conteúdo latente situado a mil pés abaixo (caverna por trás de toda caverna...) Então, o que parecia a Platão não ser mais do que um efeito estéril revela em si a inalterabilidade das máscaras, a impassibilidade dos signos.
O segredo do eterno retorno é que não exprime de forma nenhuma uma ordem que se opõe ao caos e que o submete. Ao contrário, ele não é nada além do que o caos, potência de afirmar o caos. Há um ponto no qual Joyce é nietzschiano: quando mostra que o vicus of recirculation não pode afetar e fazer girar um “caosmos”. À coerência da representação, o eterno retorno substitui outra coisa, sua própria cao-errância. É que, entre o eterno retorno e o simulacro, há um laço tão profundo, que um não pode ser compreendido senão pelo outro. O que retorna são as séries divergentes enquanto divergentes, isto é, cada qual enquanto desloca sua diferença com todas as outras e todas enquanto complicam sua diferença no caos sem começo nem fim. O círculo do eterno retorno é um círculo sempre excêntrico para um centro sempre descentrado. Klossowski tem razão de dizer do eterno retorno que é “um simulacro de doutrina”: ele é realmente o Ser, mas somente quando o “ente” é simulacro . O simulacro funciona de tal maneira que uma semelhança é retrojetada necessariamente sobre suas séries de bases, e uma identidade necessariamente projetada sobre o movimento forçado. O eterno retorno é, pois, efetivamente o Mesmo e o Semelhante, mas enquanto simulados, produzidos pela simulação, pelo funcionamento do simulacro (vontade de potência). É neste sentido que ele subverte a representação, que destrói os ícones: ele não pressupõe o Mesmo e o Semelhante, mas, ao contrário, constitui o único Mesmo daquilo que difere, a única semelhança do desemparelhado. Ele é o fantasma único para todos os simulacros (o ser para todos os entes). É potência para afirmar a divergência e o descentramento. Faz deles o objeto de uma afirmação superior. É sob a potência do falso pretendente que ele faz passa e repassar o que é. Assim, não faz retornar tudo. É ainda seletivo, faz a diferença, mas não à maneira de Platão. O que seleciona são todos os procedimentos que se opõem à seleção. O que exclui, o que não faz retornar, é o que pressupõe o Mesmo e o Semelhante, o que pretende corrigir a divergência, recentrar os círculos ou ordenar o caos, dar um modelo e fazer uma cópia. Por mais longa que seja sua história, o platonismo não ocorre senão uma só vez e Sócrates cai sob o cutelo. Pois o Mesmo e o Semelhante tornam-se simples ilusões, precisamente a partir do momento em que deixam de ser simulados.
Definimos a modernidade pela potência do simulacro. Cabe à filosofia não ser moderna a qualquer preço, muito menos intemporal, mas destacar da modernidade algo que Nietzsche designava como o intempestivo, que pertence à modernidade, mas também que deve ser voltada contra ela – “em favor, eu o espero, de um tempo por vir”. Não é nos grandes bosques nem nas veredas que a filosofia se elabora, mas nas cidades e nas ruas, inclusive no que há de mais factício nelas. O intempestivo se estabelece com relação ao mais longínquo passado, na reversão do platonismo, com relação ao presente, no simulacro concebido como ponto desta modernidade crítica, com relação ao futuro no fantasma do eterno retorno como crença do futuro. O factício e o simulacro não são a mesma coisa. Até mesmo se opõem. O factício é sempre uma cópia de cópia, que deve ser levada até o ponto em que muda de natureza e se reverte em simulacro (momento da Pop’Art). O factício e o simulacro se opõe no coração da modernidade, no ponto em que esta acerta todas as suas contas, assim como se opõem dois modos de destruição: os dois niilismos. Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem restabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os modelos e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um fantasma – a mais inocente de todas as destruições, a do platonismo.
DoxDoxDox
segunda-feira, 30 de março de 2009