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CZARABOX

[ WORDS on IMAGES. ]

ANITA LEANDRO O tremor das imagens - cinema militante francês

O tremor das imagens - cinema militante francês


O tremor das imagens
Notas sobre o cinema militante

anita leandro
Professora da Escola de Comunicação da UFRJ
Mestre e doutora em Cinema pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3



“Por que é que, às vezes, as imagens começam a tremer?”. A pergunta é formulada numa breve sequência de O fundo do ar é vermelho, de Chris Marker (1977), documentário em que o cineasta, servindo-se de imagens rodadas por mais de cinquenta cinegrafistas militantes, faz um balanço da história das lutas sociais no mundo entre os anos 1960 e 1970. Sobre imagens da repressão policial a manifestantes na França, na Tchecoslováquia e no Chile, ouvimos três respostas diferentes à pergunta de Marker, dadas por vozes masculinas de três cinegrafistas que comentam, alguns anos depois, os documentos de arquivo que eles haviam produzido no calor dos acontecimentos: “Comigo, isso aconteceu em maio de 68, no Boulevard Saint Michel”. “Comigo, foi em Praga, no verão de 68. Quando eu vi as imagens, elas tremiam. Eu tinha dominado minhas mãos, mas a câmera captou tudo”. “Em Santiago do Chile, a câmera colocou-se, sozinha, em slow motion, decerto por emoção, diante daqueles jatos d’água que tantas vezes eu vi serem utilizados contra manifestantes de esquerda em Berlim, Louvain e nos Estados Unidos”. Da sequência de Marker sobressai a qualidade do engajamento político dos entrevistados. O posicionamento de suas imagens na guerra remete a um gesto assumido por vários outros cineastas militantes naquele momento crucial da história.
O tremor que o comentário dos cinegrafistas de Marker traz para o primeiro plano está relacionado a um novo tipo de ação política que emerge no final dos anos 60, um novo modo de militância, que “transforma em cinema” aquilo que era apenas discurso militante teleológico (COMOLLI e RANCIÈRE, 1997: 19). Diferentemente da voz off, eficaz e totalizante dos filmes ligados a sindicatos e partidos, o tremor das mãos que filmam e das vozes que comentam as imagens retomadas por Marker, assinala, ao contrário, a manifestação de uma fragilidade, de uma marca de subjetividade que viria redefinir o cinema militante. O tremor dessas imagens feitas às pressas, muitas vezes clandestinamente, é a assinatura física, corporal, de uma nova comunidade política, fortalecida no anonimato das práticas solidárias que, naquelas circunstâncias, constituíram uma verdadeira “comunidade cinematográfica”, como a “comunidade literária” que Bataille convocou para substituir o comunismo moribundo de Stalin. Essa “comunidade dos que não têm comunidade”, mas que responde a uma “exigência de comunismo” (BLANCHOT, 1983: 9), não se coloca mais a serviço das ideologias, não se deixa

1. O nome dos Grupos Medvedkine foi uma homenagem dos operários franceses ao cineasta bolchevique alexandre Medvedkine, a quem Chris Marker dedicou dois filmes: Le train en marche (1971) e Le tombeau d’Alexandre (1993). O cineasta russo foi o criador do Cine-trem, experiência coletiva de cinema itinerante, feito com operários e camponeses. Nos anos 30, a equipe de Medvedkine percorreu a União Soviética num trem, no interior do qual havia laboratórios de revelação de películas e mesas de montagem, o que permitia projetar imediatamente o material filmado nas fábricas e colcoses.


mais instrumentalizar. Ao serem justapostas na montagem, as imagens de arquivo acessadas por Marker evocam a ação coletiva de diferentes cinegrafistas num projeto comum de resistência por meio do cinema.

Colocar em evidência o tremor das imagens é a forma encontrada por Marker de tornar sensível o apelo distante da imagem de arquivo, abordada em seu filme como uma testemunha ainda viva do passado. Ao atribuir àquelas imagens o estatuto de um vestígio material da luta política, capaz de mediar uma atualização do passado, sem o recurso do discurso informativo, Marker homenageia o historiador do imediato que é o cineasta militante. Numa cartela que aparece no final de O fundo do ar é vermelho, ele lembra que os verdadeiros autores desse filme, embora a maioria não tenha sido consultada sobre a utilização nele feita de seus documentos, “são os inúmeros cinegrafistas, operadores de som, testemunhas e militantes cujo trabalho se opõe, sem trégua, ao dos Poderes, que prefeririam que não tivéssemos memória”.
Os efeitos de montagem de arquivos de Marker enfatizam o tremor das imagens, sua fragilidade e, ao mesmo tempo, assinalam o compromisso do cinema político com a memória. Mesmo quando se trata de obras coletivas ou anônimas, as imagens militantes testemunham sobre o engajamento de quem filma em relação ao seu tempo. O tremor das mãos que a imagem capta e a montagem reforça não é uma questão ideológica nem tampouco um problema puramente estético. Ele remete à gravidade do instante filmado e a uma escolha ética do cinegrafista diante do trágico. É por isso que toda a filmografia dos chamados “Medvedkine”, grupos de cineastas-operários que surgem durante as greves de 1968 em Besançon e Sochaux, na França, se apresenta, hoje, como um documento histórico da maior importância sobre a luta pelo controle das mãos no sistema capitalista: de um lado, o trabalho na linha de montagem industrial, que lesa os tendões e amputa os dedos; do outro lado, a produção independente de um cinema feito por operários, que libera o potencial criador de suas mãos atrofiadas.1
A forma que o tremor das mãos condiciona é a manifestação visível de uma tomada de posição no combate por parte de quem filma. É o sentido que Marker deu aos títulos das duas partes de O fundo do ar é vermelho — As mãos frágeis e As mãos cortadas —,
reafirmando sua crença no projeto político de uma década revolta. Mais tarde, as mãos serão ainda o tema de dois outros grandes filmes políticos do século XX, inteiramente apoiados na montagem de arquivos: Expressão das mãos (Harun Farocki, 1997), repertório de atitudes e gestos manuais que o cinema registrou, e História(s) do cinema (Jean-Luc Godard, 1988-1998), cujo penúltimo capítulo é dedicado ao poder de ação das mãos. Muito antes do cinema, Kierkegaard viu no tremor das mãos o sintoma de uma fé inabalável. Essa é a conclusão a que chega o filósofo a partir de um estudo dos gestos de Abrahão preparando o sacrifício a Deus de seu filho mais amado. Tremor e temor são os dois lados da fé daquele que acredita sem jamais duvidar, mesmo diante do absurdo (KIERKEGAARD, 1979:120). O novo cinegrafista militante tem uma fé similar, mais forte do que o medo e do que as ideologias. Sua crença no futuro é o que o leva a vencer o tremor e a arriscar sua vida a cada tomada, produzindo imagens que testemunham sobre a presença do cinema na história.
Mãos dadas
As cidades de Besançon e Sochaux formavam, nos anos 60, um importante polo industrial europeu. Entre 1968 e 1970, em meio às fortes greves, surgem ali os Grupos Medvedkine, estrutura de produção cinematográfica inteiramente livre, criada pelos operários, que vai permitir a realização e a distribuição de uma dúzia de filmes feitos por eles mesmos durante seis anos. A organização dos proletários em torno de programações e reivindicações culturais havia começado no final da segunda guerra mundial, com a participação de três membros da Resistência francesa: André Bazin, que, antes de fundar a revista Cahiers du cinéma fazia fichas de filmes para o grupo Povo e Cultura; Chris Marker, que ia de vez em quando a Besançon mostrar filmes aos operários; e Pol Cèbe, um dos responsáveis pelo Centro de Cultura Popular de Palentes-les-Orchamps e pela primeira biblioteca criada por operários da região dentro de uma usina.
A convite de Pol Cèbe e em parceria com o cineasta italiano Mario Marret, Marker realiza, em Besançon, A bientôt, j’espère (1967-1968), filme em torno de uma greve na Rhodiaceta, primeira usina a ser ocupada pelos operários franceses desde 1936. A bientôt, j’espère passa na televisão francesa, a ORTF, no
dia 5 de março de 1968, com muita audiência, e no dia 27 de abril o filme é projetado em Besançon para os operários (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 330). Apesar da grande cumplicidade entre os dois lados da câmera nesse filme, os operários não gostam do resultado, considerando que o olhar sobre a classe operária é ainda distante da realidade que querem mostrar. Marker sugere, então, que eles comecem a fazer seus próprios filmes.2 Juntamente com Bruno Muel e outros técnicos e cineastas, como Godard, por exemplo, Chris Marker organiza oficinas de realização para os operários e, ao final de seis meses de formação, já iniciados nas técnicas de filmagem e montagem, eles criam o Grupo Medvedkine de Bensançon.
Os Medvedkine ganham rapidamente autonomia, adquirindo uma câmera e uma mesa de montagem. A SLON – Société de Lancement des Oeuvres Nouvelles, criada por Marker en 1967, fornecia película, transferência do som, revelação, cópia de trabalho e mixagem. Tudo isso era feito à noite, gratuitamente, pois a SLON não tinha nenhum financiamento. Marker é o mecenas pobre desse novo gênero, o de um cinema feito por operários, que nasce das mobilizações sociais da época. Num texto posterior, em homenagem a Mario Marret, Chris Marker refere-se ao “ambiente de perfeita igualdade entre filmadores e filmados” em A bientôt, j’espère (MARKER, 2006: 11-19). Bruno Muel, que assina mais tarde uma das obras primas dos Grupos Medvedkine, Avec le sang des autres (1974), define como uma utopia essa aventura comum que reuniu operários, cineastas e técnicos num momento histórico da maior importância (MUEL, 2000: 15). Até então, alguns cineastas achavam que deviam trabalhar para os operários, fazendo filmes militantes. Os operários, por sua vez, pensavam que deviam se virar sem os cineastas. “Nós estávamos à flor da pele, desconfiávamos de todo mundo, particularmente dos parisienses, que chegavam carregados de películas e de câmeras”, diz Georges Binetruy, operário-cineasta. “Mas a partir dos primeiros estágios, compreendemos que eles não vinham nos dar lições mas apenas transmitir uma formação técnica que iria liberar nosso espírito através dos olhos” (BINETRUY, 2006: 5). O cinema operário militante dos Grupos Medvedkine surge como uma terceira via, baseada naquilo que Rancière chamaria, a propósito da produção intelectual dos proletários franceses do século XIX, de “igualdade de inteligências” (RANCIÈRE e FAURE, 2007: 342).3
3. Entre a revolução de 1830 e o golpe de estado de 1851, os proletários franceses produzem uma grande quantidade de textos militantes que transmitem o desejo de emancipação operária. Uma seleção desses textos, intitulada La parole ouvrière, foi organizada por Jacques Rancière e alain Faure e publicada pela primeira vez nos anos 70.

Como diz Binetruy, a partir do momento em que se põe os olhos atrás de uma câmera, a pessoa não é mais a mesma, seu olhar muda. Uma experiência de transformação do olhar começava, efetivamente, naquele instante. Henri Traforetti, grevista da Rhodiaceta e membro fundador do Grupo Medvedkine de Besançon, explica da seguinte forma a relação dos operários da época com a estética: “Nós não tínhamos tido abertura ao belo, à cultura do belo: belas palavras, bela literatura, belas imagens, era um mundo inteiro que tínhamos dificuldade de identificar e que víamos como algo inacessível, reservado à burguesia” (TRAFFORETTI, 2006: 4). A cultura era o que mais faltava para os operários e ela se impõe durante os acontecimentos de 68 como uma arma necessária, um utensílio que lhes daria acesso a uma existência digna e lhes permitiria resistir ao processo de desumanização da vida na usina.
Os Medvedkine obtiveram imagens do meio operário antes nunca vistas, imagens rodadas às escondidas, no transporte coletivo das usinas, ao amanhecer, na hora do almoço, finais de semana e dias de folga. Com uma câmera leve e de um ponto de vista privilegiado, pois totalmente interno, eles fizeram filmes de denúncia e de resistência, rodados no epicentro das lutas sociais e montados em forma de panfletos, muitos deles curtos, em torno de sete minutos. Bernard Benoliel define esse conjunto de filmes como um “ensaio revolucionário de cinema”, que marca “o fim do olhar do etnólogo” (BENOLIEL, 2002). Graças ao seu ponto de vista interno, os filmes dos Grupos Medvedkine aparecem hoje como a melhor fonte de contrainformação sobre as condições de vida do operariado francês daquela época.
A experiência autônoma dos Grupos Medvedkine vai tornar possível uma certa tomada de poder pela imagem, ainda que relativa e momentânea. “O cinema pode ser uma arma para o operariado. Já está provado que ele é uma arma eficaz para a burguesia”, dirá um entrevistado de Week-end à Sochaux (1972), filme do grupo de Sochaux, criado mais tarde. Delineiam-se, por assim dizer, duas frentes de combate na estética dos cineastas operários: de um lado, há uma inovação dos métodos de entrevista, dispositivo que eles vão reinventar ao seu modo, obtendo uma fala operária potente e inédita, desprovida de jargões; do outro

4. Segundo Marker, A bientôt j’espère, ao passar na televisão, suscitou o seguinte comentário do general De Gaulle: “Que história é essa desses jornalistas que tratam operários com tanta intimidade?” (MaRKER, 2006: 15).

lado, há um grande investimento na montagem, o que os leva à constituição de uma reserva de imagens de arquivo, imagens que vão migrar de um filme a outro, entre Sochaux e Besançon.
A palavra operária é agora proferida com segurança, graças a dispositivos de automise en scène e de direção compartilhada. Os entrevistados são também aqueles que decidem sobre a estética de filmagem e de montagem de sua própria fala. Dado o conhecimento profundo que eles têm dos problemas da classe operária, além de uma grande intimidade com as pessoas filmadas, os Medvedkine trazem à tona aspectos desconhecidos de uma vida dura, sofrida e injusta. Devido a turnos de 9 horas na linha de montagem, sem poder conversar, alguns operários começavam a perder a fala. A qualidade da escuta que os Medvedkine põem em prática em seus filmes vai ajudar seus camaradas a recuperarem a palavra e a afirmarem um novo discurso sobre sua condição social e seus desejos. Da mesma forma que os operários franceses do século XIX em seus jornais independentes e panfletos, os Medvedkine também fazem do poder da palavra “a expressão de um pensamento e não a manifestação espontânea de um sofrimento e de uma cólera” (RANCIÈRE e FAURE, 2007: 341). Em cada filme, as entrevistas reiteram o esforço dos operários em pôr em circulação uma nova análise, uma nova visão das condições de vida na usina e fora dela.
Os depoimentos filmados pelos Medvedkine mostram que
a vida do operário se resumia, então, à escolha entre dois tipos
de morte: uma rápida, no confronto, e a outra devagar, no dia
a dia da usina. Num dia perde-se o tato, depois um dedo, uma
mão; num outro dia perde-se um pé, no outro adquire-se uma
úlcera, depois um câncer; não há regularidade na troca de
turnos, os casais trabalham em horários diferentes e, como não
se encontram mais, acabam separando-se e os filhos crescem
com os avós. O cinema não vai mudar tudo isso, é claro, mas
pela primeira vez ele acena com a possibilidade de revelação
de uma “história política recalcada” (BRENEZ, 2006: 42-44).
Descobre-se que a mise en scène é uma arma. O compartilhamento
da palavra que os Medvedkine colocaram em prática naquele
momento, misturando, às vezes, real e ficção, fez muito mais do
que simplesmente antecipar novas abordagens da entrevista no
cinema. É todo um capítulo cuidadosamente silenciado da luta de
classes que irrompe com esses filmes, inquietando as elites.4
A montagem é outra arma de controle da palavra, da qual se apropriam os Medvedkine. À promessa do então primeiro-ministro Chaban-Delmas de uma “nova sociedade” para os franceses, os Medvedkine respondem ironicamente com uma série de curta- metragens de 7 minutos, intitulada Nouvelle Société. Num estilo bem próximo daquele que marcou as montagens de arquivo de Guy Debord, a série de filmes expõe os discursos do poder, desenvolvendo a estratégia situacionista do desvio de sentido das imagens e das falas.5 Em Kelton (1969), documentário anônimo do Grupo Medvedkine de Bensaçon sobre as más condições de trabalho na fábrica de relógios Kelton, a fala do primeiro ministro francês prometendo uma vida nova para todos é associada a fotos publicitárias, manchetes de jornais e outras imagens do mundo do espetáculo, que o filme alterna com cenas de operários no metrô, no início e no final de longas jornadas de trabalho. Ao mundo liso e não problemático da publicidade e da política profissional, o filme opõe a aspereza da vida dos trabalhadores da usina Kelton, que se levantam às três da manhã e só voltam para casa ao anoitecer. Como diz Bruno Muel, “é a dureza do trabalho na usina, na linha de montagem, o relato dos acidentes, os dedos cortados, que aparecem em primeiro plano, além dos horários, a vida despedaçada, a menina que nunca vê o pai, motorista de caminhão... Contar o que se vive no dia a dia, sem floreios, pode ser um ato político importante” (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 332).

Mãos frágeis
Em Kelton não vemos as pessoas que falam. Enquanto a multidão de operários vai para o trabalho, ouvimos apenas a voz de um jovem militante. “Eu trabalho na Kelton há um ano. Sou mecânico especializado... Eu tenho 19 anos...” A fala do operário é interrompida e a montagem intervém com o discurso do primeiro ministro: “São os jovens que deveriam inventar, criar a nova sociedade. Vocês darão as sugestões e nós as transformaremos em leis”. O jovem retoma a palavra e seu relato simples do cotidiano na usina contrapõe-se à retórica ministerial: “Embora trabalhemos como todo mundo, não temos o direito de ser eleitos para defender nossos interesses. A maioria são moças e rapazes entre 16 e 21 anos e nessa idade você não pode ser eleito delegado sindical. Não podemos militar de forma eficaz. Não temos a


5. O Situacionismo, movimento que surge em meados dos anos 50 em torno de Guy Debord, propunha o fim da arte. No
lugar dela, seriam criadas situações, capazes de restaurar as potencialidades da vida em comum. Da mesma forma que
os grupos armados da época, que expropriavam bancos e milionários, os situacionistas, em vez de produzir novas imagens, propunham a expropriação das imagens já existentes no mundo do espetáculo, desviando-as

de suas funções e subvertendo os discursos de poder que elas veiculavam.

proteção da lei nem o tempo necessário...”. Retorno ao ministro, que propõe, então, “fazer da nova sociedade uma sociedade de sócios”. Do choque dialético entre o discurso do ministro e a fala do jovem nasce o sentido do filme. “...Tem um chefe que nos vigia...”, diz o jovem. “É asfixiante, lá dentro. Ar condicionado e iluminação de neon, uma vez que o sol estragaria as máquinas. Então, eles preferem estragar o material humano”. Ele descreve o cotidiano infernal da linha de montagem: cadência desumana, proibição de ir ao banheiro, desmaios provocados por cansaço e fome, duas operárias que perderam os dedos das mãos num só dia... A maneira como o jovem operário expõe seu pensamento dá sobretudo a impressão de um monólogo interior. Mais do que uma entrevista, seu depoimento soa como uma declaração, ou mesmo uma “proclamação” (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 341). O operário faz da entrevista uma tribuna, onde ele comunica sua tomada de posição. O gesto militante é assumido por uma fala balbuciante, frágil, mas convincente em sua exposição de fatos concretos, trazendo de volta aspectos esquecidos ou apagados das reivindicações de 68.
Há, em Kelton, uma grande preocupação com a montagem, e esse filme desenvolve uma técnica de composição que atravessa toda a produção dos Medvedkine. Além do trabalho sonoro da montagem que, à maneira de Marker e de Godard, produz uma confrontação dos discursos, a banda visual do filme valoriza cenas banais da vida operária, como as longas horas passadas no transporte coletivo. Algumas imagens são mostradas congeladas, como se fossem um registro fotográfico do momento, e tal escolha de montagem tem um sentido preciso: ela sublinha o valor de documento da imagem. Além de isolar o detalhe do gesto e da expressão, o freeze frame apresenta a situação corriqueira como um instante privilegiado, que merece atenção. Nosso olhar se detém na imagem parada e a examina. Há urgência em constituir arquivos sobre a experiência vivida, e a imagem parada fornece um registro condensado do momento fugidio que é preciso reter.
Ao retomar as teses benjaminianas sobre a História, para falar da obra de Debord e de Godard, Agamben viu na parada do movimento da imagem uma manifestação do alcance político da montagem cinematográfica. A interrupção do fluxo visual ou sonoro seria uma de suas “possibilidades revolucionárias”, estabelecendo, em termos de método, uma relação estreita entre 
cinema e História. Para decifrar o passado, o historiador também precisa proceder a uma espécie de congelamento de imagem. O sofrimento do anjo de Benjamim está em não conseguir parar o movimento da tempestade que o carrega, indiferente a sua solidariedade para com as vítimas da História. Ele quer descer na terra, socorrer os feridos e enterrar os mortos, mas os ventos do progresso não deixam. A parada da imagem é o gesto político da montagem que introduz a interrupção necessária na escrita da História, mostrando que o cinema (e a própria História, num certo sentido) “está mais próximo da poesia do que da prosa” (AGAMBEN, 1998a: 72). Há um apelo indireto do efeito de montagem à historiografia. Trata-se de uma “potência de interrupção que trabalha a imagem”, tirando-a do domínio do poder narrativo (AGAMBEN, 1998a: 73). Liberado do fluxo narrativo ou do movimento de um plano, o fotograma transformado em imagem fixa pode ser mais demoradamente observado. E nesse sentido, a montagem torna possível o trabalho historiográfico e, até mesmo, arqueológico, por parte do espectador. Da mesma forma que o jovem militante em sua declaração, e os realizadores de Kelton, embora inexperientes em matéria de montagem cinematográfica, têm plena consciência da responsabilidade histórica que estão assumindo. A potência de interrupção é munição nas mãos frágeis dos cineastas operários ao acolherem o discurso balbuciante do jovem entrevistado. Congelado, o punho mantém-se erguido e a palavra fica suspensa no ar, revivificando as utopias.
Dois anos depois da criação do Grupo Medvedkine de Bensançon, é a vez dos operários de Sochaux realizarem seu primeiro filme, Sochaux, 11 juin 1968 (1970). A iniciativa partiu de operários muito jovens da Peugeot, a maioria vinda de outras regiões da França ou da imigração magrebina. Eles viviam isolados, sem família, em alojamentos coletivos pertencentes à usina, situados em bairros-dormitórios, sem nenhum lazer e sem transporte noturno. Bruno Muel conta que a única diversão dos operários era uma televisão para quatrocentos residentes. Após uma greve de seis semanas por melhores condições de moradia, eles fizeram seu primeiro filme, homenageando os grevistas de 68.6 “Eles formavam uma comunidade jovem e se sentiam livres para exprimir sua revolta, inclusive contra as rotinas sindicais” (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 333). Sochaux, 11 juin 1968 é um documentário de 20 minutos, em preto e branco, um trabalho coletivo do qual participa Bruno


6. a gênese dos filmes Medvedkine de Sochaux e
de Besançon encontra-se no importante artigo de Bruno Muel e Francine Muel-Dreyfus, “Les week-end à Sochaux”, já citado (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008).
7. Transcrição da fala de Serge Hardy em Sochaux, 11 juin 1968.

Muel. O filme retoma, pela primeira vez, as imagens do massacre dos operários que ocuparam Peugeot, um dos acontecimentos mais traumáticos e violentos das greves de 1968. Depois de cerca de 20 dias de ocupação da usina, há uma tentativa de retomada do trabalho na segunda-feira, 10 de junho. Bruno Muel conta que não havia unanimidade quanto ao fim da greve e que a usina foi imediatamente reocupada por algumas centenas de operários. “Na madrugada da terça-feira, eles sofreram um ataque extremamente violento, que desencadeou uma confrontação muito dura” (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 335). Homens do batalhão de choque, fortemente armados, com ordens de desocupar a usina por todos os meios, partem para o ataque e, no combate, dois operários são mortos e 150 saem feridos, muitos deles em estado grave, com amputações provocadas pelas bombas arremessadas pela polícia.
Sochaux, 11 juin 1968 atualiza esse acontecimento passo a passo, desenvolvendo um estilo expositivo que Nicole Brenez liga, oportunamente, ao texto Jornadas de junho de 48, de Engels, no qual a insurreição operária de Paris entre 23 e 25 de junho de 1848 é descrita hora por hora, bairro por bairro. Nos dois casos, diz Brenez, “trata-se de uma estética do fato e de uma política do incontestável”. Nos dois casos, “a simples apresentação de um ato equivale a estabelecer uma teoria da História” (BRENEZ, 2006: 42). O filme se serve de imagens amadoras do ataque policial, de cenas do enterro de Pierre Beylot, um dos operários mortos, e do testemunho de grevistas que vivenciaram os fatos, entre eles, Serge Hardy:
Eu estava lá, quando a trovoada começou. Foi aí que aconteceu uma explosão... Eu fui jogado pra cima e, na hora de me levantar... Cadê meu pé? Eu vi que eu não tinha mais o meu pé. O que é que eu fiz? Eu me levantei assim mesmo e fui embora pulando com um pé só. Eu fui até o sinal de trânsito e aí houve outra explosão. Eles nos mandaram uma nova carga. Eu fiquei coberto de estilhaços. Eles nos bombardearam uma segunda vez. E só pararam porque o Socorro chegou. Eles foram obrigados a deixar o Socorro pegar os nossos feridos.7
As imagens do combate foram originalmente filmadas em super 8, por um chofer de táxi que os operários conseguiram localizar dois anos depois e que emprestou-lhes o material — uma única bobina, com dois minutos e meio de imagens trêmulas e desenquadradas, que mostram as explosões, os corpos lacerados dos operários, os policiais atirando, os grevistas apedrejando um carro da polícia, uma moto pegando fogo, a chegada de uma ambulância. “Não tendo tempo nem meios para fazer uma cópia, nós projetamos simplesmente as imagens numa tela e as refilmamos em 16 milímetros. O resultado ultrapassou nossas esperanças. As imagens tinham ganhado um tom azulado, com uma onda de variação de luz que lhes dava a força de imagens gravadas na memória” (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 336). A refilmagem imprimiu nas imagens amadoras um estremecimento suplementar, produzido pela vibração luminosa de que fala Bruno Muel As imagens do 11 de junho vão se transformar, rapidamente, numa bandeira de luta, num ícone da classe operária na França, aparecendo em outros filmes que serão realizados pelos Medvedkine nos anos seguintes. Essas imagens, aparentemente tudo o que existe como registro cinematográfico desse combate, sempre que aparecem num filme Medvedkine, afirmam o compromisso moral dos cineastas operários em relembrar os companheiros mortos e amputados. A migração das imagens de um filme a outro potencializa, aqui, uma outra possibilidade da montagem cinematográfica de que fala Agamben, que é a repetição (AGAMBEN, 1998a: 70). A retomada das cenas do massacre reitera o ato apresentado, permitindo o retorno do acontecimento passado, seu comparecimento no presente. A montagem participa, dessa maneira, da organização da narrativa histórica e da elaboração da memória coletiva.
As imagens do massacre de Peugeot vão reaparecer em mais dois outros filmes do Grupo Medvedkine de Sochaux: Week-end à Sochaux (coletivo, 1971-1973) e Avec le sang des autres (Bruno Muel, 1974). A migração das imagens é um ato de memória da montagem, que atribui a essa filmografia o valor de um monumento histórico. Não só as imagens se repetem nos filmes de um mesmo grupo — como vai acontecer com as imagens do 11 de junho — mas também elas migram entre Besançon e Sochaux, costurando, num mesmo tecido histórico, o destino político e as atividades cinematográficas dos dois grupos. A última imagem de Sochaux, 11 juin 68, a de uma menina no enterro de Pierre Beylot, é a mesma que aparece nas vinhetas de abertura e de fechamento dos três filmes da série Nouvelle Société, do Grupo Medvedkin de Besançon.
O segundo filme que retoma as imagens do massacre dos operários é, então, Week-end à Sochaux, realizado entre 71 e 72 pelo mesmo grupo de jovens que fez Sochaux, 11 juin 1968. Week- end é um filme a cores, de 53 minutos, que alterna sequências cômicas de ficção e sequências de entrevistas ou de observação de situações do cotidiano da usina, como o trabalho na linha de montagem. Ao longo do filme, uma conversa dos jovens cineastas operários dá informações sobre as intenções do projeto. É um filme reflexivo, que mostra, de maneira didática, a forma como sua autoria é assumida pelo conjunto dos entrevistados. Um operário diz, por exemplo: “Eu fiz esse filme porque ele fala do que eu vivo em Sochaux. Um panfleto se esquece rápido, enquanto que um filme coloca o operário diante de um espelho”. Os operários querem fazer filmes que possam circular entre eles e comunicar sua visão de mundo.
Week-end à Sochaux é um filme realizado quatro anos depois dos acontecimentos de 68, e após o filme Sochaux, 11 juin 1968. Embora rememore o massacre, ele tem várias sequências que satirizam a vida na usina, interpretadas pelo próprio grupo de operários e também por atores profissionais inicialmente contratados por Peugeot para atividades teatrais na usina (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 342). Já existe em 1971 uma certa distância em relação aos fatos, o que permite aos cineastas uma liberdade relativa no tratamento das imagens de arquivo. Se em Sochaux, 11 juin 1968 há urgência em reconstituir o acontecimento, em construir uma narrativa da História — o que é feito por meio das imagens encontradas e da fala dos entrevistados, que dão um testemunho sobre o que viram e sobre o que sofreram —, em Week-end à Sochaux, a sequência do 11 de junho aparece de forma quase isolada, como um verdadeiro ícone operário, uma referência a um capítulo da história já contado num filme precedente, enfim, como a manifestação de um luto assimilado.
As imagens do massacre de 68 aparecem em Week-end quase no final do filme, sem nenhum comentário. O arquivo ressurge como uma citação do passado, o vestígio material que permite rememorá-lo. O espectador já conhece a História, e o que dele se espera é apenas um trabalho de associação da imagem do passado às falas do presente, que não fazem mais uma alusão direta ao acontecimento.
As imagens de arquivo aparecem logo após uma discussão entre os realizadores do filme, em que um dos cineastas e atores, René Ledigherer, jovem operário bretão da Peugeot, defende a distribuição dos lucros entre os trabalhadores, para que seus filhos possam ter uma educação diferente. Depois de sua fala, sem nenhum comentário, o filme retoma o mesmo travelling em preto e branco no pátio das usinas Peugeot que abre Sochaux, 11 juin 1968, e aí, então, aparecem algumas cenas do ataque policial. Não há mais a urgência em estabelecer um relato do acontecimento histórico, como em 1970, e a montagem apenas sugere a necessidade de aproximação entre passado e presente. O 11 de junho é um momento da história operária que não deve ser esquecido e o que o filme faz é uma homenagem às vítimas de 68, afirmando a persistência da utopia entre os jovens.
A última imagem de Week-end é um plano sequência de 2 minutos em que uma menina de 14 anos, Annette, filha de um operário, fala do que ela espera do futuro:
Para mim o futuro é, antes de mais nada, o fim do desemprego. Porque o desemprego não serve para nada. E um trabalhador sem emprego não é nada. A usina vai ser clara, com vidraças. E não haverá mais fumaça. Ela vai passar por baixo da terra. O diretor será nomeado pelos trabalhadores. Será uma eleição aberta a todos, sem distinção. Peões, engenheiros, todo mundo poderá se candidatar. O diretor administrará. Mas não será pago por isso. Ele trabalhará na linha de montagem, na fundição, no acabamento. Ele será pago como um peão, se for um peão. Os operários terão que garantir uma produção. Mas eles estarão mais contentes, pois estarão trabalhando para eles mesmos. E eles trabalharão menos, é claro...8
O longo plano sequência da declaração da criança é precedido por duas imagens da luta operária em momentos diferentes da História: uma cena filmada pelos autores do filme, em que vemos os operários da equipe de filmagem distribuindo panfletos na entrada da usina, e outra cena de 1968, mostrando uma grande passeata de operários. Na banda sonora, a montagem associa essas imagens a um coro dissonante de vozes masculinas e femininas que repetem, incansavelmente, a mesma palavra de ordem: “Lutemos! Lutemos! Lutemos! (...)”. Produz-se um efeito de eco e o som das palavras chega até nós como um apelo de vozes longínquas. Num corte seco, passa-se do jogral militante à fala utópica da criança. A montagem assinala, dessa forma, a ligação existente entre a luta operária e a infância. Para além da

8. Transcrição da fala de Serge Hardy em Sochaux, 11 juin 1968.

identidade de classe, que reúne os cineastas e a menina em torno de uma mesma causa e de um mesmo destino, a montagem dá, com essa aproximação, uma nova chance ao discurso militante, cernindo-o em sua infância, ou seja, antes que os sistemas repressivos instituídos depois de 68 se encarregassem de esmagar toda forma de utopia nele existente. Com sua ficção burlesca e seus operários-cineastas de 16 a 20 anos, Week-end produz uma restauração da utopia, encarnada pela longa tirada da menina no final do filme.
O cinema foi um meio encontrado pela juventude operária para se proteger da dureza da vida na usina, que não melhorou depois de 68. Ao contrário. Com as greves, os patrões puderam localizar, na linha de montagem, onde estavam os principais focos de mobilização. As lideranças foram transferidas de setor e várias medidas coercitivas entraram em vigor. Pouco tempo depois de Week-end, em abril de 72, um dos realizadores e atores do filme, René Ledigherer, seria gravemente espancado por homens da milícia patronal, armados com barras de ferro. Com traumatismo craniano (trinta e seis pontos na cabeça), maxilar quebrado, alguns dentes a menos e quase cego de um olho, ele ficou entre a vida e a morte por vários meses. O acontecimento será lembrado no último filme do grupo de Sochaux, Avec le sang des autres, de Bruno Muel (1974).

Mãos cortadas
Seis anos se passaram desde o 11 de junho e as utopias alegremente anunciadas em Week-end à Sochaux não se realizaram. Como o próprio título do filme de Bruno Muel sugere, Avec le sang des autres (Com o sangue dos outros) é uma triste constatação de que o exercício de crueldade patronal não só se prolonga no presente, como se agrava. A crise do petróleo começa e os sombrios anos 70 já prefiguram o neoliberalismo e a aniquilação da classe operária europeia a partir da década seguinte. Nesse último filme, os operários descrevem condições de trabalho semelhantes àquelas denunciadas nas primeiras obras dos Grupos Medvedkine: os acidentes com as máquinas se perpetuam e muitos continuam perdendo os dedos e as mãos na linha de montagem. Nesse ambiente, como conta Bruno Muel, os Medvedkine começam a se dispersar entre 1972 e 1974. Uns voltam para a terra natal, outros mudam de emprego, vão servir o exército ou, simplesmente, se casam. “Maio de 68 tinha ficado para trás” (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 342).
As imagens de 68 vão aparecer pela última vez em Avec le sang des autres, como uma sobrevivência do passado recente de Sochaux. Dos dois minutos de imagens do ataque do batalhão de choque, apenas 30 segundos são mostrados desta vez, juntamente com imagens da última assembleia da qual participaram os dois operários mortos, imagens outrora utilizadas na abertura de Sochaux 11 de junho. A persistência das mesmas imagens de arquivo nos filmes Medvedkine foi, para os operários, uma forma de rememorar o passado, quando tudo em volta conspirava em prol do esquecimento. Christian Corouge, antigo cineasta- operário, que trabalhou na linha de montagem da Peugeot até aposentar-se, explica, num depoimento de 2003, como se deu o longo processo de apagamento da figura do operário, ao qual o filme de Muel já fazia alusão em 1974:
Não falam da revolta operária de 68. Dizem que foi uma gestação de ideias. Mas o fato é que chegamos a conclusões extraordinárias: para quê fabricar um carro que vai durar 5 anos se podemos fazer um que vai durar 20 anos? Os patrões tiveram tanto medo que desapareceram com os operários: mudaram os uniformes, não nos vestimos mais de azul, mas de cinza; não há mais cadeia de montagem, mas linha; não se fala mais de operários, mas de operadores. Nos fizeram sumir do vocabulário e da visibilidade. Na sociedade não vemos mais o operário que sai do trabalho de roupa azul, com um boné. Eles trocam de roupa e entram nos seus carrinhos. Evitou-se falar. Não existe... (PRESSMANN, 2006)9
Apesar da desmobilização do coletivo, Bruno Muel ainda resiste com o filme Avec le sang des autres. Com a cumplicidade de um cineasta militante inglês, Mark Karlin, e de sua equipe, que estavam autorizados a filmar dentro da Peugeot, ele obteve, clandestinamente, imagens das linhas de montagem e de setores que a empresa não deixava serem filmados. “Para essa filmagem, os operários haviam insistido sobre a necessidade de duração dos planos — para que se visse a engrenagem e se vivenciasse a violência do barulho que não para nunca — e também sobre a importância de filmar as mãos dos trabalhadores. Essa insistência sobre as mãos atravessa todos os filmes dos grupos Medvedkine” (MUEL e MUEL-DREYFUS, 2008: 343).10
Como uma “imagem cristal” deleuziana, o gesto das mãos que atravessa a história do cinema militante é a sedimentação de experiências de luta acumuladas. A estética de urgência desse cinema produz uma imagem temporalmente densa, que retém o presente que passa, na esperança de poder projetá-lo no futuro como uma prova dos crimes do passado, uma evidência da história (HARTOG, 2005). O gesto das mãos, última imagem do último filme dos Medvedkine, é o que resta do passado operário, sua imagem simbólica, como o engrama que percorre o atlas Mnemosyne de Aby Warburg (MICHAUD, 1998: 75, 117 e 138).11 O gesto é o sopro de vida que faz pulsar as formas. Num ensaio sobre o método de Warburg, Agamben vai dizer que nas imagens se cristalizam “uma carga energética e uma experiência emotiva, que sobrevivem como uma herança transmitida pela memória social” (AGAMBEN, 1998b). Os filmes dos Medvedkine têm alguma coisa a dizer sobre essa experiência emotiva acumulada que se manifesta, às vezes, em forma de um leve tremor das mãos ou da voz.

9. Transcrição da fala de Serge Hardy em Sochaux, 11 juin 1968.

10. as mãos dos operários
na linha de montagem são associadas, no final do texto de Muel, à história trágica de Victor Jara, o violonista chileno vítima da ditadura militar que derrubou allende no dia 11 de setembro
de 1973: quatro dias depois, no estádio para onde foram levados os presos políticos, Victor Jara, torturado pelos militares, teve seus dedos cortados por um machado, antes de ser executado.
DEVIRES, BELO HORIZONTE, V. 7, N. 2, P. 98-117, JUL/DEZ 2010 115
11. O livro de Philippe-alain Michaud traz reproduções de pequenas amostras do
Mnemosyne, coleção de pranchas pretas sobre as quais Warburg começou a montar, a partir de 1923, uma história da arte não-cronológica, sem textos, com centenas de imagens associadas umas às outras em função do gesto que elas evocam e do movimento vital que elas transmitem. antes de projetar o Mnemosyne, Warburg expôs as bases de seu método nos Ensaios florentinos, que escreveu entre 1893 e 1920 (WaRBURG, 2003).


Referências
AGAMBEN, Giorgio. Sur le cinéma de Guy Debord. In: Image et mémoire. Editions Hoëbeke, 1998a.
AGAMBEN, Giorgio. Aby Warburg ou la science sans nom. In: Image et mémoire. Editions Hoëbeke, 1998b.
BENOLIEL, Bernard. Histoire d’une rencontre: techniciens du cinéma et ouvriers d’usine. In: L’image, le monde, n. 3, outomne 2002, Editions Léo Scheer.
BINETRUY, Georges. Les groupes Medvedkine. Le film est une arme. Paris: Editions Montparnasse, 2006, p. 5.
BLANCHOT, Maurice. La comunauté inavouable. Paris: Les Editions de Minuit, 1983.
BRENEZ, Nicole. Sochaux 11 juin 68. In: Les groupes Medvedkine. Le film est une arme. Paris: Les éditions Montparnasse, 2006, p. 42-44.
COMOLLI, Jean-Louis; RANCIÈRE, Jacques. Arrêt sur l’histoire. Paris: Centre Georges Pompidou, 1997.
HARTOG, François. Evidence de l’histoire. Paris: Gallimard, 2005.
KIERKEGAARD, Sören. Tremor e temor. Abril Cultural, Coleção Os Pensadores, 1979.
MARKER, Chris. Pour Mario. In: Les groupes Medvedkine. Le film est une arme. Paris: Editions Montparnasse, 2006, p. 11-19.
MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg et l’image en mouvement. Paris: Macula, 1998.
MUEL, Bruno. Les riches heures du groupe Medvedkine (Besançon – Sochaux 1967-1974). In: Images documentaires. Parole ouvrière, n. 37/38, 2000, p. 15-35.
116 O TREMOR DaS IMaGENS / aNITa LEaNDRO
MUEL, Bruno; MUEL-DREYFUS, Francine. Week-ends à Sochaux (1968-1975). In: Mai-Juin 68, sous la direction de Dominique Damamme, Boris Gobille, Frédérique Matonti, Bernard Pudal, Editions de l’Atelier, 2008, p. 329-343.
PRESSMANN, Frédérique. Comment on a tué les ouvriers (Como mataram os operários). Entrevista com C. Corouge. Arte Radio, 2006 (http://www. desimages.be/spip.php?article196).
RANCIÈRE, Jacques; FAURE, Alain (orgs.). La parole ouvrière. La fabrique éditions, 2007.
TRAFFORETTI, Henri. Les groupes Medvedkine. Le film est une arme. Paris: Les éditions Montparnasse, 2006.
WARBURG, Aby. Essais florentins. Paris: Klincksieck, 2003. 
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ANITA LEANDRO
domingo, 18 de novembro de 2012
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