A MORTE DE MARIA MALIBRAN, Werner Schroeter, 1972 por Jean-Claude Guiguet
Apaixonado pela ópera, fascinado por Maria Callas, sobre quem realizou em 1968 dois pequenos perfis em 8 mm., Werner Schroeter visualiza aqui alguns dos episódios mais marcantes da vida de Maria Malibran, que foi “a cantora mais célebre da era romântica. Severamente educada por seu pai, que nos bastidores ameaçava-lhe com uma faca quando sua voz falhava em cena, ela consumiu sua vida entre triunfos prodigiosos junto ao público e amores sem esperança. Ela morreu aos vinte e seis anos, em 1836, deixando na memória do público de óperas um souvenir indelével”.
O resultado é uma obra singular, inquietante e caótica, que brilha de uma luz nova e já aparece como um marco na história do jovem cinema alemão, que está para se tornar um dos mais apaixonantes da Europa.
A novidade em Schroeter se nutre de insolência e paradoxos. A narração é constantemente deixada de lado em favor da representação. O cineasta não narra nem de perto nem de longe a vida de Maria Malibran, ele estende alguns instantes dessa existência no campo fílmico, instantes que são dados como sendo já reconstruídos, repensados ou mesmo representados sob os projetores de um teatro fictício ou de um teatro possível. Ele brinca com os lugares, os cenários irreais e as paisagens reais, o século XIX e os anos trinta, os rostos das mulheres e os de incertos travestis... Isso significa que a verdade tida como histórica e datada acaba sendo brutalmente “substituída” em favor de uma intensa circulação em circuito fechado de todos os mitos oriundos do cinema, revistas de grandes espetáculos ou o drama lírico que os gostos (ou talvez as paixões) pessoais de Schroeter colorem de uma maneira única como diversos produtos novos injetados numa combinação química já bastante complexa. Durante quase duas horas navegamos em um universo saturado de referências que vão de Puccini ao blues, de Marlene a Medéa, de Norma a Josephine Baker, onde autênticos crepúsculos assumem o controle de cenários pintados em trompe l’oeil, nos quais Nosferatu surge com uma máscara, branca como as neves da Baviera, para seguir uma jovem que deixa verter uma lágrima dos olhos “por uma ninharia”, onde os altos fornos da Alemanha industrial enfileiram-se por trás dos afrontamentos vocais de alguma ópera wagneriana, etc.
Esse é o lado insolente de Werner Schroeter. Ele provoca pela escolha da redundância. A grandiloqüência o enerva ou o protege, mas essa escolha é claramente uma necessidade vital. Esta hipertrofia do sentido e do signo não é gratuita, e mesmo que fosse seria necessário analisar essa gratuidade. O delírio aqui não é cultivado por si mesmo no único propósito de satisfazer um público esnobe e marginal pronto para se instalar na frivolidade desde que lhe seja fornecida uma oportunidade. Esse filme será sem dúvida a nova pastagem de toda uma intelligentsia vanguardista que não faz diferença alguma entre Cukor e Goulding a partir do momento em que Garbo usa um chapéu que se pode comprar, nos domingos e feriados, num brechó de Clignancourt. No mundo especial de Schroeter e de sua Malibran, o charme insidioso do exagero decorativo não é mais que uma armadilha. É o escárnio terrível de um jovem autor de filmes que não se faz a priori qualquer ilusão sobre como será compreendido e que não procura retificar a reputação (ou a não-reputação) na qual se apressarão em confiná-lo.
A Morte de Maria Malibran é uma meditação impressionante sobre a dor e a infelicidade de viver. O filme começa com uma mutilação sangrenta (o olho rasgado de uma menina) e termina com o sangue saindo da boca semi-fechada de Maria Malibran, fulminada no palco sob as luzes dilatadas de uma ópera fabulosa. As primeiras palavras do filme anunciam a natureza da maldição que colorará cada plano, cada seqüência e determinará a direção das situações até o resultado final: “Eu sou da raça dos que morrem quando amam”. A partir de então, esses rostos hipermaquiados são percebidos diferentemente. Devemos rejeitar a solução fácil, que consiste em promover o filme de Schroeter sob a rubrica do “kitsch”, que cobre tudo e nada. É “kitsch”, dizem. Após isso, pode-se começar a bocejar no aguardo pelo próximo produto “kitsch”.
O universo desta obra sob o signo de miragens, sonhos, pesadelos ou memórias distantes é algo como um super-expressionismo alemão, onde as cores e os sons assumiriam as relações dos jogos de sombra e luz dos filmes silenciosos do passado. Trata-se de um filme barroco no sentido pleno do termo e primordialmente porque Werner Schroeter desenvolveu até a intumescência um estilo resolutamente ostentatório. Ele representa o mundo se vinculando apaixonadamente às formas, aos jogos de aparências, às tonalidades. É um transbordamento de cosméticos, de figurinos, de jóias, de tecidos cintilantes, de cores obsessionais inesquecíveis (há alguns dos mais belos vermelhos da história do cinema, que irão se juntar na memória àqueles de Minnelli, Nicholas Ray ou Max Ophüls). Mas esse estilo ostentatório é a expressão de uma tensão, de um desejo, de uma vontade arrebatadora de tornar sensível alguma coisa que é interna e dolorosa. No entanto, no mesmo movimento, sentimos que um pudor instintivo bloqueia o desenvolvimento deste ímpeto. As faces que a câmera explora em close-ups extremos escondem um segredo por trás de suas tês lisas, imóveis e herméticas como essas fotografias empedernidas que ilustram as revistas femininas de luxo. Elas dissimulam um segredo que o poder do cinema tenta tornar visível no intervalo fulgurante de uma revelação.
Não esquecemos mais esse mal misterioso que os corrói do interior e que o filme persiste em vão em esconder sob a profusão de seduções epidérmicas. Neutralizadas pela mise en scène, elas cessam de ocultar o sentido no campo livre da frivolidade para deixar a voz livre àintrospecção. Multiplicando os sinais e os reflexos de exterioridade como verdadeiro poeta da vida interior, Werner Schroeter sucede assim e freqüentemente contra a sua vontade a “dizer pela imagem aquilo que é sem imagem”. Contrariamente às aparências, A Morte de Maria Malibran é uma obra marginal de surpreendente austeridade, e a abordagem de Werner Schroeter completamente, voluntariamente suicida; o espetáculo aqui não sendo mais que um incerto ponto de referência, algo como a esboço de uma cerimônia secreta.
(Revue du cinéma, fevereiro 1974)
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