Nem coisa de grande mestre, nem mestre, nem sequer pequeno mestre. Nem praticante da grande forma ou do épico, da pequena forma ou do minúsculo, do filme de câmara. Evidentemente que os primitivos instintos serão sempre a força nuclear de qualquer artista sem aspas. Como se vê daqui e de agora o trabalho de Robert J. Flaherty é coisa que diminui, por vezes banaliza e torna inconsequente tanto o cinema contemporâneo como muito do que vem sendo feito há décadas. Não estamos então nos domínios da gramática ou da sua desconstrução consciente, muito menos nos domínios da teoria. Tomemos o caso de “Man of Aran”, arcaísmo há muito desaparecido, luta com as formas à beira demência, enfim, modo de fazer hoje “aberrante”, sobretudo pelos que se dizem radicais e que o são apenas aconchegados no quentinho e na facilidade da pós-produção do seu escritório. Nas terras de Aran, onde Flaherty toma literalmente conta do campo de forma idêntica à que Serge Daney sentiu em Kenji Mizoguchi pelo Japão, muito forte e muito cheio de medo, gigante e sensível, a câmara, esse objecto actualmente esquecido e banalizado na sua incomensurável força, é posta em perigo a todo o momento, anda de mão dada e ao lado das gentes que filma – generosamente, deadly companions; um por todos e todos por um como o esquecido Alexandre Dumas ensinou como talvez assim mais ninguém. Isto do mesmo modo que a câmara de F.W. Murnau se deixava amaldiçoar e imergir no demoníaco dentro e fora dos castelos e dos caixões que enfrentava. O cinema hoje é fraco pois falta que a câmara, como a de Flaherty, esteja em igualdade com as pessoas que capta, lado a lado, sem as décalages e hierarquias de um oficio viciado, que se estabeleça um pacto de vida e de morte e na vida e na morte, que não se afaste ou anule ou acobarde com cauções artísticas, distâncias irônicas, selo indie, os sacrossantos conceitos inertes da ultima moda documental, retóricas académicas e afins, coisas que no fundo apenas tem como meta manter o artista confortável, aquecido, com a postura inalterada e a roupa limpa. Que ambos caminhem juntos, homens e câmara, eis uma ideia nobre de cinema. Deixar a bruteza do mundo explodir na tela, sem filtros. A moral e o sangue de Flaherty fazem com que ele tenha de ser mais um pescador de Aran ou…nada. Estar aberto às manifestações e ao chamamento do desconhecido e do que sempre nos ultrapassará. Perscrutar tudo isso e tentar retribuir de alguma maneira. Humildade. Generosidade. Simplicidade. Estar com o “pequeno” nesses infinitos de incalculáveis vias lácteas, nunca duvidar da grandeza desse “pequeno”. Entreajudarem-se. Por nada Flaherty se elevaria acima, nunca cairia no erro horrendo e estúpido de dizer que “o realizador é Deus”. Nunca. Jamais. Nem que o fodessem todo. Só assim – “Sou um dos vossos”.