Novas & velhas tendências
no cinema português contemporâneo
ENTREVISTAS
com realizadores
Pierre-Marie Goulet:
―Demoro muito tempo a perceber
o que um filme tem dentro‖
Entrevista conduzida por António Câmara
PIERRE-MARIE GOULET nasceu em 1950 e veio para Portugal em 1990. Filmografia como
realizador: Encontros, 105’ (também argumentista e montador, 2006); Polifonias - Paci é
saluta, Michel Giacometti, 82’, 35 mm cor - 1:85 (1997; com a colaboração de Teresa Garcia e
a participação de António Cunha; textos adicionais de Sérgio Godinho. Imagem: Bruno Flament
et Gilbert Duhalde. Som e misturas: Antoine Bonfanti. Montagem, Pierre-Marie Goulet e
Sandro Aguilar. Testemunhos de José Mario Branco, António Cunha, Adelino Gomes, Toni
Casalonga. Produção: Costa do Castelo Filmes, Lisboa - Image Création, Bruxelles - Les Films
du Village, Paris); Faits et dits de Nasreddin (também argumentista, 1993) mini-série TV;
Plage (também argumentista e montador, 1987); Au Père Lachaise (1986); Site (também
montador, 1980); Balade (1978); Djerrahi (1978); ICI (1975); Ô Gaule (também montador,
1974); Naissance (também montador, 1973); Un paysan des alpes (1973); Corps morts
(também montador, 1972); Mevlevi (1970). Como montador: O Caminho Perdido (2005); A
Casa Esquecida (2004); A Dupla Viagem (2000); Corps morts (1972); Argumentista: O Herói,
(com Carla Batista), real. Zézé Gamboa, (Angola 2004); Assistente de realização: Rosa Negra
(1992); Naissance (1973). Pierre-Marie Goulet tem em finalização A Casa e a Música, sobre a
Casa da Música do Porto. Traduziu para francês os diálogos de Juventude em marcha, No
quarto da Vanda e O Sangue, de Pedro Costa, Quem és tu?, de João Botelho, A comédia de
Deus e As bodas de Deus, de João César Monteiro. Foi programador de Um Rio, Duas Margens,
DocLisboa 2002, e de O Olhar de Ulisses. É co-fundador da associação portuguesa ―Os filhos
António Câmara — Tentando complementar o que já foi escrito sobre ti, não posso deixar
de te perguntar como surgiu o teu primeiro filme, Mevlevi, sobre os dervixes.
Pierre-Marie Goulet — Mevlevi nasceu graças aos músicos sufi turcos que eu tinha conhecido
quatro anos antes. Na Turquia as confrarias tinham sido proibidas pelo governo por volta de
1920. Tudo começou quando fui à Turquia em 1966, tinha eu 16 anos. Nessa altura ainda
viviam dervixes e músicos sufi que tinham conhecido os ―tekke‖, os mosteiros onde eles se
reuniam. Para contornar a proibição, os membros da confraria tinham aceitado realizar este
ritual, ou antes, esta oração, fora dos ―tekke‖ que tinham sido fechados pela policia, em certas
ocasiões ―oficiais‖, procurando assim poder transmitir um pouco do que tinham recebido
(música e ritual) a uma geração mais jovem. Foi nesse contexto que assisti pela primeira vez,
em 1966, a uma dessas cerimónias. Voltei lá um ano depois com a minha câmara de 16mm,
com a ideia de filmar uma cerimónia nesse contexto. Quando vi pelo olho da câmara aquelas
caras tão dentro de si, pareceu-me quase obsceno filmar... e não consegui filmar. Um dos
músicos sufis reparou nisso. No fim da cerimónia veio ter comigo e começou aí uma amizade
que dura até hoje.
Depois eles deslocaram-se ao estrangeiro para apresentar a cerimónia com o objectivo de
diminuir a pressão da proibição. Como uma das razões desta era uma vontade politica de
ocidentalizar a Turquia, eles esperavam que um acolhimento favorável, da parte dos ocidentais,
provocaria na volta o fim desta interdição na Turquia. Apresentaram-se então no Théâtre de la
Ville em Paris em 1970. E por intermédio desse músico de que falei eles deram–me a
exclusividade das imagens. Portanto consegui fazer o filme, mas quando pela primeira vez me
desloquei à Turquia para filmar não tinha conseguido fazê-lo.
AC — Oito anos depois fazes o Djerrahi, sobre outra confraria. Sei que o filme foi visto
por Orson Welles, que lhe fez um comentário muito elogioso numa carta, e se
disponibilizou para gravar com a sua voz um comentário que tu tinhas para o filme. E tu
não aceitaste. O sucesso assustou-te?
P-MG — Não tem nada a ver com isso. A co-produtora deste filme, Suzanne Cloutier, foi actriz
(Desdémona) no Othelo do Orson Welles e conhecia-o bem. Foi ela que lhe mostrou o filme e
lhe pediu para dizer o comentário. É verdade que ele escreveu essa carta, mas a razão porque
não aceitei não tem nada a ver com o medo do sucesso, nem pensei nisso. Eu era muito novo e
ele um realizador que eu admirava. Pareceu-me na altura desproporcionado que a voz dele
aparecesse no meu filme.
AC — Mas não sentiste que perdeste uma oportunidade única?
P-MG — Hoje acho que o filme teria aguentado bem aquela voz ―de peso‖ e tenho alguma pena
de não ter aceitado, mas na altura, talvez por timidez, não me pareceu mesmo essencial para o
filme. Confesso que hoje me surpreende o poder que o filme manteve, mas precisei para isso de
uma grande distância.
Cada vez que faço um filme levo muito tempo a perceber o que está dentro dele. Isso vem da
minha maneira de fazer filmes. Posso trabalhar até à obsessão antes de começar a filmar, sobre
todos os dados, mesmo longínquos, à volta do filme, e depois esquecer tudo. Fico à espera do
que vai surgir dali. Há processos, na fabricação de um filme, que por vezes não são muito
conscientes. Depois, para encontrar o que lá está e ligar todos os fios, levo muito tempo. Preciso
de me impregnar de uma maneira obsessiva de um universo que me irá, depois, restituir o filme.
As imagens filmadas precisam de ser esquecidas antes de ressurgirem por novos caminhos que
eu próprio não conheço.
É por isso que tenho uma grande dificuldade em fazer o filme seguinte, porque o que me
interessa mais, dentro dos filmes, é o que acontece quase por acaso, são pequenos milagres
(muito preparados) e não posso garantir que esses milagres se irão repetir. Não é milagre no
sentido em que estou a esperar passivamente, mas depois de criar um dispositivo, espero que,
como dizem os turcos, inch'Allah, nasça dele qualquer coisa, un je ne sais quoi qui s'atteint
d'aventure. Mas não é um processo mecânico. É um processo de procura obsessiva, uma
acumulação de elementos que precisam, depois, de ser esquecidos, para renascerem de outra maneira que não através de um processo intelectual.
Depois de acabado o filme, demoro muito tempo a perceber tudo o que está lá dentro. De certa
maneira isto evoca-me um texto de Jean-André Fieschi, onde ele conta que recebeu uma carta
da Janine Bazin e só dez anos depois percebeu o que estava dentro dessa carta e escreveu Les
lettres mettent parfois trés longtemps à arriver à leur destinataire. Podes ler algumas
entrevistas do Fritz Lang, do Renoir ou mesmo do Pedro Costa e também eles dizem que
precisam de muito tempo para perceber o que contém verdadeiramente um filme acabado.
Parece-me que só os realizadores de filmes sem qualquer magia sabem exactamente o que será o
seu filme antes de ele ter sido feito.
AC — Depois do Mevlevi fazes um filme que não tem nada a ver com a Turquia, o Corps
Morts. Filmas os "bunkers" da "Muralha do Âtlantico" sobre as encostas de França. Sei
que o filme teve uma reacção do público tão feroz que o critico Paul Thibaud, da revista
Esprit, escreveu um artigo atacando o público e defendendo o filme. Compreendeste a
reacção do público?
P-MG — O filme era, como escreveu Thibaud, "non-directif‖ (não directivo); não havia
comentários, não havia texto. O comentário estava previsto, e tinha sido gravado e montado. Era
composto por textos de Paul Virilio, que foi o homem que "inventou" os bunkers e outras
citações de autores por ele escolhidos, como Rilke, Holderlin, ou por mim próprio como Julien
Gracq.
Portanto a banda sonora eram esses textos e o som de uma tempestade que vai chegando.
Durante as misturas, pareceu-me que seria mais forte tirar as palavras e deixar unicamente o
som dos elementos, o vento, o mar, a tempestade. Talvez essa ausência de apoio intelectual
tenha feito com que o público dessa altura reagisse muito mal. Sentiu-se talvez perdido.
AC — Estes filmes de que falámos até agora chama-los documentários, ou não?
P-MG — Tens uma definição de documentário? Entre reportagem e cinema não é difícil ver as
diferenças. Sobre o que se chama documentário e o que se chama ficção já não sei.
AC — Mas a seguir filmas uma obra que marca um pouco essa diferença, o Faits et Dits de
Nasreddin, que é um conjunto de 25 filmes com actores...
P-MG — Para mim esse filme não marca diferença nenhuma. Não há diferenças em matéria de
trabalho cinematográfico. Poderia dizer-se que Nasredinn é um documentário sobre as histórias
antigas da Turquia e do Mediterrâneo.
AC — Sei que colaboraste em exposições como a "Avant-Aprés", uma exposição sobre a
arquitectura num espaço que já foi a cinemateca de Paris e onde projectaste, em 24 ecrãs,
450 filmes entre os quais um que mostra o Henry Langlois em plano sequência, a
percorrer esse espaço da cinemateca como um fantasma. Os filmes que fazes por tua
iniciativa são diferentes dos que te são encomendados?
P-MG — Todos os filmes que fiz antes de chegar a Portugal alternam entre filmes que quis
fazer e filmes que me pediram para fazer. Não há nenhuma diferença entre eles. Mesmo que o
assunto te pareça distante à partida, depois de entrarmos nele, ele torna-se teu. Aconteceu!
Quando fiz o Site - e por fazê-lo da maneira que fiz — a instituição que mo encomendou nunca
mais me pediu outro filme. Mas o filme já era meu… as consequências são exteriores ao filme.
AC — Quando começaste a fazer filmes tiveste algumas referências de alguns
realizadores?
P-MG — Sim. Várias. Não estudei numa escola de cinema. Toda a minha formação foi feita na
sala de cinema da Cinemateca de Chaillot, no tempo do Henri Langlois e da Mary Meerson. Muito cedo, aos 19 anos, comecei a trabalhar como assistente de realização, nomeadamente
para o Serge Roullet (que depois me produziu alguns dos meus filmes). Uma outra pessoa muito
importante para mim, apesar de não ser realizador, foi Antoine Bonfanti. As longas conversas
que tínhamos juntos foram também fundamentais nessa construção de ―referências‖. Trabalhei
também durante um tempo com Jean Daniel Pollet. O Jean-Daniel tem um filme pelo qual eu
tenho uma grande fascínio, que se chama Méditerranée. Eu gostava tanto do filme que o mostrei
várias vezes. Tinha sempre de lhe pedir a cópia de cada vez que o mostrava. À sexta vez, ele
perguntou-me o que se passava comigo. Ficámos amigos. Depois trabalhei com ele pelo menos
duas vezes. Sobre o resto, se vires bem as programações que fiz, verás que há realizadores que
surgem com muita frequência: Jean Epstein, Vítor Erice, António Reis, Pelechien, Bories
Barnet etc...
AC — Vens para Portugal em 1990 e só em 1997 é que fazes o teu primeiro filme
“português”, o Polifonias.
P-MG — O meu primeiro filme "português", porque em 1993 ainda filmei o Nasreddin.
Trabalhei antes com a Margarida Gil como assistente de realização no Rosa Negra, fiz depois
uma coisa muito pequena, através do Hermínio Monteiro da Assírio & Alvim, etc.
AC — Há cineastas portugueses com os quais te identificas como realizador?
P-MG — Não me lembro da cronologia das coisas. Os filmes portugueses que conheço e de
que gosto, tenho a impressão de já os conhecer há muito tempo. É como com na amizade: a data
do encontro é pouco importante. Os filmes do António Reis conheci-os já depois de ter filmado
Polifonias. Em relação ao Paulo Rocha, vi o Mudar de Vida entre o Polifonias e o Encontros…
Descobri o Zéfiro do José Álvaro Morais antes do Polifonias, mas redescobri-o quando fiz a
programação do cinema português para Lussas, e cada vez que o vejo de novo, cada vez me
interessa mais. Mas quando cheguei a Portugal não conhecia nada do seu cinema. Descobri o
cinema português cá. Agora parece-me tê-lo conhecido desde sempre.
AC — A programação que tu fazes, tão intensamente, não te tira tempo para a realização?
P-MG — (risos) Felizmente ou infelizmente, não sei, passa muito tempo entre cada
filme…entre o Polifonias e o Encontros passaram dez anos. Se continuar assim faço o próximo
daqui a mais dez anos… Espero que não, já comecei a fazer a répérage para o Além das pontes,
que fará um tríptico com os outros dois. Desta vez, a base será o encontro entre o Alentejo e a
relação subterrânea que a Turquia pode ter com ele. Será também em Peroguarda, mas também
em Mértola e na Turquia, Istambul e talvez na Anatólia. As programações, que como sabes faço
há já muitos anos, ou as oficinas com os miúdos n’ Os Filhos de Lumière, são momentos
importantes no meu percurso, que me ajudam a sentir o cinema. E o trabalho de programação,
por exemplo, é para mim muito próximo do trabalho de montagem...
AC — Em relação ao Polifonias, esta paixão pela música tradicional portuguesa, que
filmaste a partir dos registos do Giacometti, é mais francesa do que portuguesa? Porque
achas que este fenómeno existe, sendo tu parte do próprio fenómeno?
P-MG — Não sei. Suponho que existem portugueses tão apaixonados pela memória da música
tradicional como foram o António Reis ou o José Álvaro Morais, que filmavam a memória que
está dentro da terra. Talvez se repare mais quando é um francês a fazer e não um português. Por
ser estrangeiro. Mas o amor e a memória de uma terra, no António Reis, são muito marcados.
Foi o António Reis que mandou o Giacometti para o Alentejo e ao encontro da Virgínia Dias,
poetisa de Peroguarda, perto de Ferreira do Alentejo. O importante do Giacometti era que ele
não ia somente registar a memória, mas construir uma relação humana fora do comum. Nunca
vi um musicólogo que tivesse uma tão intensa relação humana com os camponeses como o
Giacometti. Era uma coisa única. O António Reis também tinha essa sensibilidade. Como diz a Virgínia, "o Sr. Reis foi o primeiro que nos deu mimos".
Curiosamente, quem descobriu que a Virgínia era a autora dos poemas que dizia, não foi nem o
Giacometti nem o António Reis, mas sim o jornalista Adelino Gomes, que acompanhou
Giacometti na sua última visita a Peroguarda, e escreveu um texto no Público sobre a poesia
dela. A partir daí Virgínia deixou de ter vergonha de dizer que os poemas são seus. Quando a
Virgínia diz poemas, em ambos os filmes, nunca vês para quem ela os diz. Não sabemos para
quem fala. Mas em frente dela estavam pessoas que eram muito importantes para ela. O António
Cunha, fotógrafo que acompanhava Giacometti, já tinha uma relação afectiva com ela; o
Adelino Gomes, o Zé Mário Branco (que fazia parte de um grupo de jovens do Porto que
acompanhou o António Reis ao Alentejo nos anos 60). E como a Virgínia não se preocupa com
a sua imagem, a câmara para ela não conta, o que conta é a pessoa que está em frente. É o ser
humano, não a câmara.
AC — Mas ali ninguém olha para a câmara. Como consegues tornar a câmara invisível,
sem o pedires?
P-MG — A câmara não é invisível. Depende do que é importante para a pessoa filmada. Se
convidas alguém para ficar a ouvir a protagonista, com quem já existe uma ligação forte, é
normal que, para alguém que não está preocupado com a sua imagem, a câmara não exista. O
que é importante é a pessoa que está à sua frente e não a câmara. No Encontros nunca tive de
dizer ―por favor não olhe para a câmara‖.
AC — Na estrutura da montagem do Polifonias há alguma influência da estrutura dos
cantos? A repetição das imagens é uma espécie de refrão?
P-MG — Não posso dizer que no início houvesse um plano escrito com uma estrutura parecida
com as do canto. Mas quando começas a mergulhar obsessivamente no universo do canto, é
óbvio que qualquer coisa parecida pode aparecer. Acho que o Polifonias acabou por ter uma
construção polifónica. Para filmar os cantos no Polifonias, vi todos os arquivos na RTP. Todos
os grupos estavam em linha excepto nos arquivos do Giacometti, onde os cantores formavam
sempre um círculo, agarrando-se pelos ombros. Falei com os cantores, e eles explicaram-me que
num palco seria difícil manterem-se em círculo, porque, pensavam, não era conveniente que
alguns deles virassem as costas ao público. Mas também diziam que cantarem alinhados
prejudicava o canto. Com efeito, uma pessoa fundamental no grupo, que é o alto – a voz que se
eleva acima do grupo de homens e que frisa, quase sempre, a dissonância - era menos pior
ouvida pelos outros cantores. Falei-lhes de Michel Giacometti e das imagens que ele tinha
filmado. Eles confirmaram-me que era assim, em círculo, que cantavam antigamente. Propuslhes portanto que cantassem em círculo.
Com a disposição em círculo colocou-se outra questão, que era a de saber como os filmar,
porque havia naqueles cantos um aspecto muito convivial, ao mesmo tempo que transmitiam
uma importância e dignidade muito telúricos. Tratava-se de dar esses dois aspectos que podiam
parecer contraditórios: um muito direito, estático, ligado à terra, e outro mais livre e convivial, o
do círculo.
Fiz algumas répérages filmadas do canto no Alentejo. Da primeira vez foi com uma câmara
muito solta, à mão. O resultado desta forma de filmar foi que se conseguia captar muito bem a
convivialidade pelo movimento da câmara, mas perdia –se completamente o lado hierático.
Depois fiz uma segunda série de ensaios filmados, desta vez com uma câmara completamente
fixa. Esse lado mais hierático passava agora bem, mas perdia-se completamente a relação de
convivialidade entre os cantores. Finalmente, decidi ir à procura daquele que tinha feito a
câmara nos meus primeiros filmes, Gilbert Duhalde, e pôr-lhe essa questão. Ele acompanhoume ao Alentejo para ver e ouvir os cantores antes da rodagem propriamente dita. Depois dessa vinda ao Alentejo criámos um dispositivo a que chamámos «movimento imóvel».
Instalámos um travelling circular en torno dos cantores, sempre do lado de fora porque estava
fora de questão que a câmara entrasse no círculo dos cantores. Ao rodar num travelling circular
em volta deles, apanhando as suas costas com os braços que se entrelaçam, ao mesmo tempo
contrariámos o movimento fixando a câmara num ou noutro rosto de cantor que se encontrava
frente à câmara, do outro lado do círculo. Assim, ao mesmo tempo apanhámos o grupo circular
de homens que se mantêm solidamente agarrados entre eles, mas também a personagem em
frente da câmara.
A seguir havia o problema do ponto e do alto. Decidimos quais eram os sete ou oito cantos mais
prováveis para o filme, gravei o som e entreguei-o ao operador de câmara, para ele saber quando
entravam o ponto e o alto. Por tudo isto, quando me falas de documentário, encenação e
direcção de actores, compreendes a minha dificuldade em assumir terminologias.
Sempre gostei da ideia de ter uma imagem entre duas imagens e dez minutos mais tarde ter a
mesma imagem entre outras duas imagens. Isso cria-te a sensação de que a imagem repetida não
é a mesma. Mesmo que seja o mesmo grupo de imagens, o facto de ser ao minuto 10 ou ao
minuto 20 torna-as diferentes. A memória que estás a construir quando vês um filme vai
modificar o teu olhar sobre esta imagem, à segunda vez não vais ver essa imagem da mesma
maneira.
Com a música passa-se comigo uma coisa que é conhecida de todos: quando comecei a ouvir os
cantares alentejano, e eu sou muito lento na música, às vezes aquele de que mais tarde vou
gostar mais não é o que mais me impressionou da primeira vez. O primeiro canto que vês no
Polifonias é um canto que já se ouviu no princípio do filme. Quando o vês filmado já o ouviste
e já faz parte da tua memória. Reconheces já qualquer coisa, mesmo se esse reconhecimento
ainda não é evidente. Neste filme em particular este mecanismo fazia todo o sentido por causa,
exactamente, da estrutura do canto, do refrão. A repetição é uma coisa que, na música, ninguém
põe em causa. O refrão faz parte da música mesmo numa sinfonia ou nos leitmotifs do Wagner e
ninguém diz, Ah estás a repetir a mesma coisa.
No Encontros repito também as imagens mas não é por causa da música, é por causa da
memória. O Encontros também tem uma estrutura musical mas não ligada ao canto. Está mais
ligada a uma acumulação de memórias que se transformam pouco a pouco. No Encontros
funcionou bem fazer trabalhar a memória de quem viu ou está a ver o filme. O filme fala sobre a
memória mas ao mesmo tempo estás a fazer um exercício sobre a tua própria memória. E o final
do filme é, no fundo, o trabalho prático para o espectador fazer funcionar a memória do que foi
falado durante todo o filme.
AC — O final foi feito em conjunto com os homens do som, Bonfanti e Joaquim Pinto?
P-MG — Fiz o filme do Giacometti com o Antoine Bonfanti, que era um senhor do som que
sempre trabalhou comigo, desde 1978. Foi o grande engenheiro de som do directo. Do Chris
Marker, do Godard, da Marguerite Duras, do André Delvaux, do Resnais... O Bonfanti, que era
corso, antes de chegar a Portugal ouviu falar do Giacometti que era corso também. Travaram
uma amizade e graças a isso desenvolvemos, os três, um projecto que deveria ser filmado. Mas
o Giacometti morreu antes que pudéssemos começar o filme.
Cinco anos depois o Antoine e eu continuávamos a querer fazer o filme e finalmente decidimos
fazer o Polifonias, que retomava o desejo de Giacometti de fazer encontrarem-se as culturas
corsa e alentejana. Acrescentei ao filme uma homenagem ao próprio percurso de Michel
Giacometti.
No Encontros, nas misturas, o Antoine Bonfanti já tinha morrido. Mas quando eu estava a
montar os sons já não estava sozinho. Tinha junto a mim a presença virtual do Antoine, com
quem devia misturar o filme. Ouvia-o junto a mim. A verdadeira dedicatória está no plano final.
É um plano onde toda a montagem do som foi concebida e montada como se fosse ele que a fosse misturar, como tinha feito ao longo dos 30 anos da nossa colaboração. A minha sorte foi
ter encontrado um engenheiro de som para as misturas – o Joaquim Pinto – de grande
sensibilidade e que conhecia muito bem o trabalho do Antoine.
Comparado com o Polifonias, o Encontros é mais complexo. No Encontros queríamos mostrar
o Mudar de Vida às pessoas do Furadouro que tinham participado no filme do Paulo Rocha.
Mas as pessoas já não viviam lá, nem havia sala de cinema. Conseguimos, no entanto, juntá-las,
e decidi fazer a projecção numa sociedade recreativa que equipámos com 35mm, Quando estás
numa sala de cinema não sabes se estás no Furadouro ou em Ovar ou Matosinhos, mas tenho a
certeza de que para as pessoas, ver o filme no Furadouro, no próprio sitio, muda a maneira de o
ver. Não há explicação exterior, mas isso faz parte do trabalho para se fazer um filme. Vêem-se
as imagens, e percebe-se que a intensidade das emoções que houve nessa sala, neste dia, foi de
grande importância para o filme. Faz parte da carne, da matéria do filme.
Instalámos um travelling e projectámos o filme duas vezes sem público, para saber quando
haviam as imagens do mar no ecrã ou partes mais claras, com mais luz; o operador de câmara
sabia quando entravam, pois não havia qualquer tipo de iluminação nessa cena; a única luz era a
luz do ecrã; tudo isso foi obviamente preparado. Sabíamos quando era possível filmar. Aí, é a
luz da projecção que faz a luz do filme.
E vês que o Paulo Rocha está comovido, parece estar a descobrir o filme. Não sei se se percebe,
mas a senhora que está sentada ao seu lado é, no filme, a filha da Júlia, a personagem que a
Maria Barroso interpreta no Mudar de Vida.
O Encontros evoca coisas desaparecidas, a presença dessas coisas desaparecidas. Por exemplo,
da floresta do Mudar de Vida passamos para a floresta de hoje e ouvimos o som da floresta do
Paulo Rocha. Isso não é um lamento. É para transmitir a presença, é como se ainda estivesse
presente. A memória não é passado, é presente.
A civilização, hoje, tem uma coisa terrível: está feita de propósito para se perder a memória. É
muito simples: se não temos memória, podem fazer de nós o que quiserem. Não temos ponto de
referência. Dou-te um exemplo estúpido: vou comprar um tomate, e sabe só a água. Dizem-me
que é um tomate, tem forma de tomate, tem cor de tomate, mas é só água, não tem sabor. Se
ninguém alguma vez te deu um tomate com sabor a tomate, como é que vais saber a diferença
entre os dois? A memória é fundamental, senão vão continuar a dar-te tomates que são só água.
Acho que o Encontros trabalha sobre o tempo, a memória, o presente e tudo isso de uma
maneira que ainda não compreendi completamente. Mais essaie de trouver ce que je voulais
dire, pas ce que j’ai dit.
Polifonias, de Pierre-Marie Goulet
DoxDoxDox
quarta-feira, 30 de novembro de 2011