O Documentarismo do Cinema Uma reflexão sobre o filme Documentário∗
Nota introdutória
Uma nota introdutória – ainda que breve – é importante não apenas pela oportunidade em mencionar o nosso objecto de estudo: o filme documentário mas, também, para apresentar a nossa hipótese geral de trabalho, hipótese essa que submetemos a uma problematiza- ção que se apoia na Teoria do Cinema e na História do filme documentário e a uma pro- blematização que se confronta com a praxis documental - os filmes propriamente ditos – e à qual acrescentámos os depoimentos e en- trevistas daqueles que assumem o documen- tário como uma opção de realização cinema- tográfica, uma vez que os consideramos úteis para rastrear essa mesma praxis.
Passemos então a enunciar a nossa hipó- tese geral de trabalho: PROPOR o termo de Documentarismo para designar uma pers- pectiva que coloca em destaque diferentes modos de ver o mundo através do cinema e no cinema. Neste sentido, o Documen- tarismo pressupõe uma contiguidade entre o filme documentário e o filme de ficção, apresenta-se como uma consequência da di- ficuldade em distinguir o registo documen- tal do registo ficcional e tem a utilidade de
∗Resumo da tese de Doutoramento apresentada na Universidade da Beira Interior, 2006.
destacar que a classificação de um filme im- porta muito menos que o modo como olha- mos e somos olhados pelo cinema, o que po- derá contribui sobremaneira para libertar o documentário do peso que sobre ele recai de re-presentar ou ter por dever re-presentar a “realidade tal qual”. O conceito de fronteira é então convocado para designar os filmes - ou eventualmente todos os filmes - que não cabem pacificamente na classificação de do- cumentário ou na classificação de ficção.
Para abordarmos a hipótese enunciada di- vidimos o nosso estudo em dois momentos. Num primeiro momento procedemos a uma contextualização do nosso objecto de es- tudo tendo em conta a bibliografia consul- tada e, num segundo momento, trataremos de avançar para uma re-contextualização onde o termo Documentarismo será apresen- tado e desenvolvido tendo em conta a filmo- grafia de António Campos, realizador portu- guês unanimemente reconhecido como do- cumentarista.
Contextualizar
Nos estudos sobre o filme documentário que tivemos oportunidade de ler, verificámos, no essencial e muito resumidamente, que se es- grimem argumentos a favor e contra a ideia do documentário efectivamente “representar a realidade”. Os primeiros destacam a liga- ção que as imagens do documentário pos- suem com o que tem existência fora dessas imagens e os segundos - os que são contra - lembram que a imagem cinematográfica em si e só por si não garante que não tenha ocor- rido uma total fabricação.
Só por si documentário é um termo que arrasta consigo um peso: a obrigação de “re- presentar a realidade”. O cumprimento ou não cumprimento dessa promessa que lhe está subjacente tem sido, em suma, o que motiva grande parte da discussão que rodeia o documentário. Já a ficção parece ser um companheiro sempre presente. Ora é um companheiro incómodo que ofusca ou acusa o documentário, ora um aliado inestimável na defesa de um cinema de elevada quali- dade, um cinema de efectivo trabalho de re- alização cinematográfica. Já o passado his- tórico tem sido fonte de inspiração para ali- mentar polémicas. O movimento documen- tarista britânico dos anos 30 introduziu um tom sério e responsável ao documentário e os movimentos de cinema realista (expres- são que propomos para designar os seguin- tes movimentos: “cinema directo” nos EUA; “Free cinema” na Inglaterra, “cinema ver- dade”, na França e o movimento “Candid Camera” ou “Candid Eye”, no Canadá) dos anos 60 celebraram o registo do acaso e do espontâneo como garantia de um contacto íntimo e imediato com o “real”.
Da nossa parte, e enquanto espectadores, iremos fixar a nossa reflexão na filmogra- fia de António Campos, com o propósito de averiguar o lugar aí reservado ao filme docu- mentário. Não se trata de procurar uma de- finição, mas apenas que esta nossa investiga-ção possa contribuir para os modos possíveis de pensar o documentário.
Re-contextualizar
A filmografia de António Campos - que se situa entre 1957 e 1993 - é aparentemente diversa: documentários propriamente ditos, filmes institucionais, sobre Arte ou ficção adaptada de obras literárias. Há, no entanto, uma coerência temática e formal, muito em especial, antes e depois de um acontecimento que costuma servir de marco e oportunidade para uma mudança de discurso, o 25 de Abril de 1974. Ainda que admitamos haver algum tipo de avanço ou de recuo, o que gostaría- mos de destacar é que estamos perante uma filmografia suportada por uma ideia de ci- nema muito precisa, a saber, o cinema tem uma missão tão importante quanto urgente a cumprir: filmar o presente. E esta é uma missão que António Campos tomou como sua e na qual se empenhou profundamente. O cinema é assim chamado a colaborar numa consolidação do presente impedindo que o mesmo se transforme num passado opaco.
“Filmar o presente” é, no entanto, uma ex- pressão demasiado vaga e que trataremos de clarificar com 3 pontos que nos parecem es- senciais:
1) Em primeiro lugar, um registo in loco. O realizador deslocou-se aos locais onde os acontecimentos estavam a decorrer e onde as pessoas viviam. Os seus filmes são pois o re- sultado de experiências vividas com pessoas concretas em situações concretas. Por exem- plo, no caso de Terra Fria, filme adaptado do romance homónimo de Ferreira de Castro, a rodagem decorreu em Padornelos (distrito de Vila Real), a mesma aldeia em que Ferreira de Castro escreveu e situou o seu romance.
2) Um segundo ponto diz respeito à actu- alidade dos temas e aqui podemos destacar dois filmes: A Invenção do Amor e Vilarinho das Furnas. A Invenção do Amor, um filme adaptado do poema homónimo de Daniel Fi- lipe, é uma metáfora ao ambiente de opres- são mas, em especial, de perseguição vivida antes do 25 de Abril de 1974. Por seu lado, Vilarinho das Furnas trata de um tema não menos dramático: uma pequena aldeia mi- nhota que foi submersa pelas águas de uma barragem e onde António Campos registou os derradeiros gestos de uma vivência em co- munidade.
3) Por fim, um terceiro ponto para nos re- ferirmos aos intervenientes. António Cam- pos aproximou-se das pessoas que fazem os trabalhos mais pesados, as que mais se esforçam mesmo sem qualquer garantia de um benefício correspondente ao seu esforço. Sempre ao lado do seu povo e solidário com os seus problemas, a filmografia de António Campos encontra-se enraizada na vida do povo português, mas essa filmogra- fia caracteriza-se, essencialmente, por pres- tar homenagem às mulheres, à mulher-mãe e à mulher capaz de executar trabalhos pe- sados. Nos seus filmes também encontra- mos uma presença de crianças que não raro nos olham a nós espectadores, partilhando o silêncio. Por exemplo, Falámos de Rio de Onor termina com um longo plano de uma fotografia de um rosto de criança e em Retra- tos dos das Margens do Rio Lis onde o fluir das águas do rio Lis é associado ao fluir da vida daqueles que habitam e trabalham junto às suas margens, as crianças apresentam-se- nos tão-somente e apenas com uma convic- ção inabalável: “Eu existo”. E existir, o sim- ples existir é em si o maior sinal de Espe- rança. Estes três pontos dependem e são percor- ridos por um outro que nos interessa parti- cularmente, já que foi no cinema que An- tónio Campos encontrou o meio mais ade- quado para divulgar a originalidade do povo português; esse aspecto diz então respeito ao seu estilo cinematográfico. Trata-se de um estilo que definimos utilizando uma expres- são de António Campos a propósito de Um Tesouro, a sua primeira curta-metragem, e que nos parece adequado alargar a toda a sua filmografia, a saber, a “poesia com os pés na terra”. Esta expressão destaca que estamos perante um aturado trabalho de realização ci- nematográfica que não coloca em causa nem distrai o espectador do conteúdo da sua fil- mografia.
Sem nunca cair no mero postal ilus- trado, nem no mero exercício formal, An- tónio Campos é o realizador da planifica- ção cuidada e amadurecida, uma planifi- cação que lhe permite não recorrer à re- construção dos acontecimentos e que prevê de antemão a inclusão de gestos espontâ- neos de personagens encarnadas por acto- res não-profissionais, por actores profissio- nais ou por quem se representa a si mesmo.
E não é por ter filmado os mais desfavo- recidos que António Campos se assumiu le- gítimo representante dos mesmos. Nunca re- clamou dar “voz ao povo”, nem tão pouco se trata aqui de um “assalto ao real” (no sentido de um registo “nu e cru”). A sua câmara está próxima daqueles que filma, olhando-os de frente, mas estabelecendo a distância neces- sária, nem de mais nem de menos, absoluta- mente justa. É uma câmara que se substitui ao olho humano. O que nos seus filmes se pressente é que por detrás da câmara há uma força humana que a movimenta.
António Campos operador tem a par-ticularidade de “fazer desaparecer” a pre- sença da câmara e de proceder a um enqua- dramento dinâmico, no sentido em que se adapta ao que está a filmar. Trata-se enfim, de uma câmara curiosa e atenta a tudo quanto a rodeia que apreende, ou melhor, que ab- sorve, o que está à sua frente e movimenta- se como uma força centrípeta que atrai e en- quadra pessoas e acontecimento em cenários naturais - e esta é uma câmara que se detém, em especial, nas pessoas e para quem os ce- nários naturais: o mar, a montanha, os rios, os vales, nunca são constituídos em persona- gem.
António Campos é, também, o realizador da montagem depurada, o seu corte aperfei- çoa o filme, distribui por cada plano a dura- ção mais adequada e expurga o que (even- tualmente) possa estimular o mais pequeno sensacionalismo, ou qualquer tipo de voyeu- rismo. É um corte seco e preciso, de um rigor extremo. A montagem é, no essencial, uma actividade onde o realizador trabalha “corpo a corpo” com o material rodado, recorrendo àquilo a que chamámos raccord por analo- gia, ou seja, uma ligação entre os planos que mantém o equilíbrio de composição e de en- quadramento, de um plano para o plano se- guinte. E é, finalmente, o realizador do e para o espectador. É para ele que faz filmes; é com ele que António Campos se preocupa, pretendendo tocar tanto o espectador do pre- sente, aquele que é colocado perante aconte- cimentos que estão a decorrer, como o espec- tador futuro, aquele que poderá olhar para o passado através dos seus filmes.
O espaço fílmico não é um espaço para uma orquestração de entradas e saídas em campo, é um espaço de permanência. Po- demos dizer que a partir do momento em que uma pessoa ou um objecto entram em campo
é para não mais de lá saírem. Por exemplo, em Um Tesouro, no primeiro plano do filme uma mulher entra em campo, nos dois planos seguintes essa mesma mulher surge já dentro de campo e apenas se movimenta dentro dos limites do enquadramento.
A permanência em campo remete-nos para um outro aspecto importante: a riqueza de conteúdo. Entendemos que essa riqueza de conteúdo diz, essencialmente, respeito à relação constante que o cinema estabelece com outras obras. O cinema não se encon- tra alheado das preocupações de outros auto- res, nomeadamente dos que têm na palavra o seu modo de expressão, em romances, con- tos, poesias - ou mesmo em livros de investi- gação científica, nomeadamente os livros do antropólogo Jorge Dias que serviram ao rea- lizador para preparar a rodagem de Vilarinho das Furnas e de Falámos de Rio de Onor.
Em António Campos, o trabalho de adap- tação é, também (e sobretudo), um traba- lho de transformação. O cinema é enten- dido como uma Arte contemporânea de ou- tras Artes e que pode partilhar com elas de um mesmo espírito sem, no entanto, perder a sua autonomia uma vez que possui os seus próprios recursos. Ao posicionar-se assim, António Campos vai ao encontro da concep- ção de André Bazin do cinema como uma “arte impura”, isto é, o cinema que conta- mina e que se deixa contaminar por outras proveniências.
Guardadas as devidas distâncias, António Campos e os escritores Loureiro Botas, Mi- guel Torga, Ferreira de Castro, Passos Co- elhos e Teófilo Braga encontram-se enraiza- dos na originalidade povo português, no quo- tidiano dos homens e mulheres que traba- lham na terra e no mar para daí retirarem o seu sustento e que têm no nascimento e na morte os momentos fulcrais da vida. A mis- são do cinema tal como entendida por Antó- nio Campos, a de “filmar o presente” é uma missão que na sua filmografia se apresenta com rigor e justeza, sem lamentações, nem recorrendo a qualquer tipo de demagogia. Os seus filmes respiram tranquilidade.
Há ainda um aspecto que podemos apre- sentar apenas como nota, mas que enten- demos não poder deixar de realçar e que diz respeito às condições para fazer cinema. Desconfortável com um cinema onde pre- domine a figura do produtor e fortemente avesso a tudo o que pudesse de algum modo afectar a sua liberdade, António Campos en- contra nos procedimentos do filme documen- tário uma outra possibilidade ou uma outra forma de fazer cinema. Uma outra forma que, para usarmos uma expressão do reali- zador, se constitui em “anti-cinema”.
No seu percurso, António Campos não participa propriamente dos movimentos e movimentações do cinema português. É um percurso mais solitário, seja por dificuldades em aceder a materiais e equipamentos para os quais não possuía recursos financeiros, seja por dificuldade de diálogo com o meio citadino por onde circulavam as influências e as tomadas de decisão.
Para o realizador, fazer cinema não é uma actividade onde se formam equipas que se organizam e salvaguardam num sistema de produção, distribuição e exibição bem estru- turado e assente na especialização de tarefas. Em vez disso, e ao redor de um determinado projecto é necessário que todos comunguem do mesmo entusiasmo e de uma mesma afi- nidade de sensibilidades.
A actuação de António Campos é então mais pessoal e mais íntima. Mais pessoal porque é ele o operador e montador dos seus
filmes usando, quase exclusivamente equi- pamento amador (8 e 16 mm) largamente mais manejável que o formato profissional (35 mm). Da sua filmografia chegam mesmo a constar filmes que apenas foram feitos com o intuito de experimentar a câmara de filmar, nomeadamente, O Rio Lis e Campos de Lei- ria. A sua actuação é, também, mais íntima porque estabelece um contacto muito pró- ximo não apenas com os intervenientes dos seus filmes mas, também, com os espectado- res. À excepção de Terra Fria (1992), único filme a ter exibição comercial, foram os ci- nes clubes, as colectividades, as associações, as escolas ou os festivais de cinema que apre- sentaram os filmes de António Campos aos espectadores e quase sempre na presença do próprio.
Iremos agora tentar explicitar o termo de Documentarismo que tem como fundamento a resposta à questão que colocámos inicial- mente: que lugar ocupa o filme documentá- rio na filmografia de António Campos?
E a resposta é que não conseguimos identificar um lugar específico. O re- gisto documental serviu-lhe de experimenta- ção, constituiu-se como um projecto de ci- nema – e lembramos que o seu objectivo maior era “filmar o presente” - e podemos, também, encontrá-lo nos filmes de ficção intrometendo-se por entre os planos ence- nados. É o caso a que já fizemos referên- cia de A Invenção do Amor e ao qual pode- mos acrescentar Histórias Selvagens, com o drama das cheias em Montemor-o-Velho ou as famosas chegas de bois e a feira transmon- tana feita propositadamente para a rodagem de Terra Fria, mas com vendedores autênti- cos.
Se tivermos em conta que, em António Campos, o documentário não ocupa um lu-gar específico, podemos avançar para uma outra dimensão a que chamamos de Docu- mentarismo, para realçar que mais explicita- mente ou à retaguarda, a componente docu- mental está sempre presente no cinema. Se as imagens do documentário têm uma liga- ção especial com o representado, o Docu- mentarismo lembra que as imagens, todas as imagens possuem uma autonomia própria e solicitam da nossa parte que nos dirijamos a elas sem que nos percamos pelo acessório, ou seja, chamar constantemente o que é ex- terior às imagens, como seja a veracidade ou não veracidade da representação.
O Documentarismo não é já e apenas uma praxis de carácter estritamente documental, mas passa a dizer respeito a uma ligação ao mundo através do cinema. Neste sentido, aquela que consideramos ser uma das princi- pais tarefas do Documentarismo é trabalhar não apenas os modos de “representação da realidade” presentes no documentário, mas interessar-se pelo modos de “representação da realidade” antes, durante e depois da ins- titucionalização do documentário enquanto género (o que decorreu nos anos 30, com o movimento documentarista britânico). En- tendemos que esta metodologia de trabalho é coerente com a nossa posição em pensar o cinema a partir do documentário.
Assumindo a perspectiva do Documenta- rismo em António Campos, podemos afirmar que os seus planos documentais não são os que nos mostram a praia da Vieira em Um Tesouro, as mulheres a ceifar em Vilarinho das Furnas, a chega de bois em Terra Fria, as cheias de Montemor-o-Velho em Histó- rias Selvagens, . . .
Os planos documentais são aqueles que concorrem para o modo de ver o mundo que está presente no seu cinema. Ou seja, são os aspectos que mencionámos atrás a respeito do seu estilo cinematográfico – não apenas as suas escolhas mais estritamente cinema- tográficas mas, também, as suas escolhas te- máticas - que nos permitem a nós, espectado- res, estabelecer e averiguar uma ligação ao mundo através do seu cinema. Muito resu- midamente, podemos dizer que no cinema de António Campos o Homem (com H maiús- culo) é o valor maior e está aí presente um olhar militante nas causas que apresentou, mas absolutamente despojado de qualquer reivindicação panfletária.
Em suma e para concluir, a filmografia aqui tratada é composta por filmes de fron- teira, mais que darem a ver o mundo, são fil- mes que remetem para um modo de dar a ver o mundo destacando que é no cinema e pelo cinema que se traça o nosso pensar, sentir e agir.
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DoxDoxDox
domingo, 6 de março de 2011