PARANOID PARKpor Luiz Carlos Oliveira Jr.Paranoid Park é um filme sem chão, sem teto. Os personagens do filme são adolescentes que vivem sobre seus skates, logo acima do chão, abaixo do teto – ou entre o céu e a terra. O espaço-imagem que Gus Van Sant cria para eles se dá justamente aí, um pequeno vôo em slow motion, como na cena em que vemos, um a um, os skatistas passando diante da câmera. O último deles erra a manobra e cai. Seria demais dizer que o filme resume seu enredo nesse plano? Um corpo em suspensão, uma fatalidade, uma queda. O protagonista Alex (mesmo nome de um dos atiradores de Elefante) escreve uma carta contando o que lhe aconteceu, e a narrativa do filme segue o relato caótico que vem direto de sua mente, como lampejos da consciência. Estamos colados ao ponto de vista do personagem, e não mais às operações do dispositivo (como era em Elefante e Last Days), que de certa forma se acha pulverizado – o que não impede um reforço ainda maior do lado conceitual. A exploração de um universo mental do personagem lembra os filmes anteriores a Gerry – em particular Drugstore Cowboy, Garotos de Programa e Gênio Indomável.
Não foi por acaso que Gus Van Sant decidiu trabalhar novamente com o diretor de fotografia Christopher Doyle. Eles tinham trabalhado juntos no remake de Psicose, donde devemos destacar dois aspectos: 1) Psicose foi o primeiro filme de Van Sant em que cada plano era uma aventura plástica e, sobretudo, conceitual, antecipando a radicalidade de seus projetos recentes; 2) Paranoid Park se inspira bastante em Hitchcock, o maior mestre da ficção paranóica da história do cinema, para instaurar a dúvida no olhar e se embrenhar pelo assustador universo da culpa. Pelo menos duas cenas remetem precisamente a Psicose: a cena no carro, quando Alex enfrenta a chuva e a noite para ir ao parque de skate, e a cena do banho, com a água do chuveiro desabando sobre Alex. Paranoid Park assimila o retalhamento da cena do chuveiro de Psicose em sua própria narrativa, um corpo fragmentado e complexo, e evita as explicações psicológicas tornando-se um filme em desproporção, pois quanto mais recebemos informações sobre o ocorrido, mais mergulhamos na sua opacidade e deflação. O crime não é motivado por um distúrbio mental, é um acidente provocado por uma fagulha mínima – uma força presente no mundo, cada corpo podendo ser um suporte em potencial dessa força (pura questão de física). Alex agiu por reflexo e provocou uma morte grotesca, filmada em seu aspecto aterrorizante. Uma profunda ancoragem do olhar de Van Sant ao olhar do personagem se materializa naquela cena do segurança partido em dois, rastejando na direção de Alex. Numa cena anterior, o detetive foi até a escola de Alex e mostrou uma foto da parte inferior do corpo do segurança. A outra imagem, a parte ausente, só pode ser evocada pela mente de Alex, para quem tudo já se tornou um pesadelo – é por isso que Gus Van Sant deve filmar aquilo como um pesadelo, uma cena de horror. A montagem (e trata-se de um autêntico filme de montagem) embaralha a realidade e seu fantasma, o mundo externo e a alienação.
Para mergulhar no estado de consciência do seu protagonista, Paranoid Park não recorre a imagens monolíticas que ilustrariam o peso da culpa. Van Sant faz, ao contrário, uma espécie de mise en flux da consciência. Pela segunda vez consecutiva, não vemos as nuvens aceleradas – que são como a assinatura de seus filmes – senão por alusão: em Last Days eram reflexos fugidios no vidro do carro, agora são sombras que passam sobre Alex. Mais do que uma gag de autor (algo que Van Sant definitivamente adora, basta lembrar do videogame com os personagens de Gerry que aparece em Elefante), isso demonstra que as imagens do filme em si, assim como os adolescentes que vemos, são as verdadeiras presenças aéreas de Paranoid Park. Desde Elefante nos acostumamos a ver corpos voláteis, estados gasosos do ser em contraste ao impacto sólido dos acontecimentos em que estão imersos. Nesse universo de sensações etéreas, como responder ao peso dos eventos que se fincam na base dos filmes? Numa cena de Paranoid Park, o professor de física explica o empuxo para os estudantes: uma tensão dos fluidos. O filme é um estudo sobre o empuxo da piscina onde os skatistas mantêm seus corpos em suspensão, realizam seu balé fluido e errático. Fica ainda mais claro que há um mundo lá fora (com guerras e outros acontecimentos "maiores"), há uma gravidade das coisas, mas o que vemos são imagens hiper-ventiladas, uma experiência de torpor e languidez no limiar do desmaio. A narrativa é uma queda em câmera lenta. É como se, para ingressar naquele paraíso perdido que é o parque de skate que dá título ao filme, Alex precisasse tombar das nuvens, sair da inocência (enredo do filme adolescente por excelência). Paranoid Park é o vale dos anjos caídos aos quais Alex está destinado a se juntar.
Poucos cineastas conseguem, hoje, estabelecer ao mesmo tempo tanta continuidade e tanta liberdade entre um filme e o seguinte. São inúmeras as cenas de Paranoid Park em que constatamos uma renovação em cima de motivos visuais, narrativos e sonoros anteriormente trabalhados. Na já citada cena do banho, há um crescendo de ruídos de rua e sons de pássaros que sufoca o personagem à mesma medida que areja os jogos formais de Gus Van Sant. Os azulejos como que ganham vida, o filme se abre a um lugar ausente. Não é puramente um espaço imaginário, é antes um encontro, mediado pela pista de som, entre o paraíso e o inferno. Toda a ambiência sonora de Paranoid Park toma o aspecto de um alhures, um universo que as imagens atingem apenas parcialmente. Algo falta ao mundo filtrado pela visão de Alex. As trocas de olhares são fendidas por uma dimensão do inescrutável. O filme apreende o espaço entre um olhar e o outro, esse espaço onde circulam desejos, intenções, interrogações, mas não atinge plenamente o que há por trás dos olhares. Alex tem um rosto ainda mais angelical que qualquer outro protagonista de Gus Van Sant, e todos no filme parecem seqüestrar, com os olhares, um pouco de sua beleza quase infantil. Função vampírica do olhar – algo de que o próprio diretor está longe de se isentar.
As imagens feitas em super-8 são muito parecidas com vídeos de skate, mas com uma diferença: em Van Sant saímos do terreno da iconografia e migramos para a mitologia. Aqueles adolescentes flutuantes são anjos à espera de um julgamento que nunca se resolverá. Mais triste do que os filmes anteriores de Gus Van Sant, Paranoid Park transforma o mito da adolescência eterna em um purgatório sem fim.
DoxDoxDox
domingo, 9 de maio de 2010