The Business of Fancydancing (2002)
Um filme de Sherman Alexie
Realização: Sherman Alexie; Argumento: Sherman Alexie; Montagem: Holly Taylo; Elenco: Evan Adams (Seymour Polatkin), Michelle St. John (Agnes Roth), Gene Tagaban (Aristotle Joseph), Swil Kanim (Mouse); Fotografia: Holly Taylor; Música: Brent Michael Davids; Produção: FallsApart Productions. Duração: 103 minutos.O filme The Business of FancydancingSherman é a primeira e única longa-metragem (até à data) do escritor nativo americano Sherman Alexie (Spokane / Coeur d’Alene), o mais recente vencedor do prémio literário americano PEN/Faulkner Award for Fiction, com o seu último livro “War Dances”. Em 2007, a sua obra “The Absolutely True Diary of a Part-Time Indian” foi também distinguido, entre outros, com o National Book Award for Young People’s Literature.
Não só pela peculiaridade de ser um filme realizado por um escritor reconhecido, como pelo facto de ser um exercício repleto de críticas irónicas às experiências dos nativo- americanos na contemporaneidade (característica que marca em grande parte a obra escrita do autor), este filme de Sherman Alexie representa, no panorama do cinema nativo americano contemporâneo, um esforço ousado e original para a transmissão de um ponto de vista
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O ciclo “Década dos Zeros” visa dar a (re)descobrir ao público os filmes esquecidos da primeira década do século XXI. Partimos do princípio que esse esquecimento assenta em três motivos: o facto de terem sido “apagados” por outro filme do realizador; o facto da maioria dos críticos os ter ignorado e/ou o facto de não terem tido lugar ou espaço suficiente no circuito normal de distribuição. Com isto em mente, 15 estudantes e jovens cineastas fizeram as suas escolhas, assim tentando responder a um desafio que apenas continha uma exigência: não seguir a maioria ou o “bom gosto” instituído.
Todas as informações em: www.decadadoszeros.blogspot.com
postindian. Como o próprio termo indica, postindian refere-se à expressão cultural que procura a desconstrução do “índio”, no sentido de uma remodelação da sua imagem distorcida, a qual, no caso do cinema, tem o seu expoente máximo no “inimigo”que habita os westerns americanos. Sendo que The Business of Fancydancing é um filme indissociável do conceito de postindian tal como ele é defendido por Gerald Vizenor (um outro “peso-pesado” da literatura nativo-americana), vale a pena clarificar as intenções deste autor. Com efeito, a principal premissa do ponto de vista de Vizenor no que diz respeito a uma identidade postindian é a distinção que o autor faz entre “índio” e “nativo”. Assim, Vizenor explica que o “índio” é uma invenção colonial, uma ausência que não especifica a diversidade cultural das tribos nativo-americanas. O autor acrescenta que a atitude postindian desconstrói a ideia de “índio”, criando desta forma uma presença nativa que edifica as “verdadeiras” identidades dos povos nativo-americanos através de uma ponte para o futuro. Gerald Vizenor sugere ainda que o conceito postindian se inspira na figura do trickster, que, através do humor e da ironia, questiona e desconstrói estruturas estabelecidas, revertendo-as, neste caso, a favor dos nativos.
Após esta sumária explicação e, tendo em conta uma grande parte da história do cinema de Hollywood no que diz respeito à representação dos “índios”, torna-se mais clara a escolha de The Business of Fancydancing como um exemplo da forma como os povos nativo- americanos superam, cinematograficamente, as ideias erradas sobre as suas culturas, lutando pela manifestação da sua presença activa no mundo da imagem contemporânea. Sherman Alexie é especialmente empenhado nesta luta, demonstrando um grande esforço na actualização das vivências nativo-americanas. Assim, as suas personagens de “índios" não existem apenas e, idilicamente, no séc. XIX (situação retratada na maior parte dos westerns, dando a ideia de que o “índio” não encaixa num outro mundo senão o da conquista histórica do Oeste), mas, pelo contrário, fazem parte do fluxo intercultural que inunda a actualidade. Acompanhando esta ideia, o escritor/realizador propõe um filme no qual a imagem inovadora de nativo-americano se reflecte na personagem central do filme, Seymour Polatkin, um escritor homossexual Spokane, bem sucedido no mundo urbano da contemporaneidade. Um postindian por excelência, Polatkin representa o “não-índio” que conseguiu “libertar-se” da reserva e avançar para o sonho americano das cidades. O insólito não acompanha apenas a construção da personagem principal: Sherman Alexie escolhe como conflito de Seymour não o relacionamento com os euro-americanos, que neste caso o idolatram, mas sim as rivalidades e disputas internas entre Polatkin e os seus familiares e amigos da reserva Spokane.
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Tendo como linha orientadora esta premissa narrativa, o realizador estende o seu exercício à experimentação estrutural, acabando por construir (ou desconstruir, dependendo da perspectiva), uma complexa rede de relacionamentos e dependências não só entre as personagens como entre os próprios momentos do filme, as sequências, as cenas, os planos, os espaços, o tempo. Sherman tenta, não só um distanciamento do que são as imagens estereotipadas dos nativo-americanos, como a criação de uma estrutura fílmica que se aproxime da sua vivência enquanto nativo-americano. Acerca de uma “sensibilidade” nativo- americana em relação ao mundo, Larry J. Zimmerman afirma:
“Para os europeus, o passado é uma estrada longa e rectilínea que parte da época actual e segue para trás, em direcção a um ponto invisível no horizonte, ou seja, nessa perspectiva é um local longínquo e alheio, que nos distancia dos povos antigos, incluindo os nossos antepassados. Para muitos grupos índios, porém, a passagem do tempo não é linear mas sim circular [...]. O passado é um sítio onde residem todas as coisas que completaram o seu ciclo e que agora “andam por aí”, não distantes mas imanentes.”1.
Assim, o trabalho de Sherman Alexie enquanto realizador é o de um trickster, trocando a ordem “natural” das situações, criando confusão, codificando a história que, montada que está de acordo com uma lógica de sonho ou memória fragmentada, não segue uma concatenação evidente. Por conseguinte, há uma organização assumidamente subjectiva dos momentos do filme, pois estes não são regidos pela ordem de sucessão temporal. Pelo contrário, pode falar-se de evocação involuntária, no sentido em que a história se comporta como um organismo vivo cuja dimensão inconsciente rege o material mostrado e cria uma noção de circularidade, onde a distinção entre os vários elementos é difícil e até desnecessária.
Finalmente, Alexie constrói um filme que foge da imobilidade e que recorre à ideia de expansão, tanto a nível técnico como narrativo. Concretamente, em termos estruturais, os momentos expandem-se, movem-se uns sobre os outros, criando novos sentidos e espaços na narrativa; a história, por sua vez, desdobra-se nas diferentes personagens, expandindo-se do indivíduo para o grupo e vice-versa.
É também enquanto trickster que Sherman Alexie evidencia a ironia no seu trabalho, usando, como uma das cenas iniciais do seu filme, um plano de Seymour, sentado na montra de uma livraria que celebra o “National Indian Month”, a ler um excerto de um dos seus livros. Este momento lança a fórmula de sucesso da escrita de Seymour Polatkin,
1 ZIMMERMAN, Larry J. (2002), Os Índios Norte-Americanos: crenças e rituais visionários; pessoas sagradas e charlatães, espíritos da terra e do céu, Köln: Evergreen (Taschen) (edição portuguesa), pág. 12.
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evidenciando a ironia como meio de sobrevivência do escritor na sociedade dominante. Por outro lado, Sherman Alexie, no texto lido por Seymour, enumera todos os preconceitos relacionados com as histórias de índios, salientando não só a sua consciência de tais representações desfasadas, como a diferença de The Business of Fancydancing em relação a todas essas “regras” que o filme não segue. A incursão de Sherman Alexie no cinema revela assim uma perspectiva diferente acerca das vivências nativo-americanas. Questionando a apologia do grupo, da tribo, o realizador / escritor aventura-se num discurso arrojado sobre a complexidade das pressões, não só externas como internas à comunidade. Acima de tudo, The Business of Fancydancing é um exercício de possibilidades, uma abertura completa ao domínio da reinvenção: “Rather than rendering the film transparent, an apparently completely “real” experience, The Business of Fancydancing continually foregrounds itself as an imaginative Native representation.”2.
Uma escolha e texto de © Joana Rodrigues Mestrado em Comunicação e Artes FCSH-UNL
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sábado, 1 de maio de 2010