POR LUÍS MENDONÇA
LFU 1A EDIÇÃO EM PAPEL, MARÇO 2013
I like walking, and I like the way you feel when you're in a landscape,
the way you can measure yourself against landscape,
the way landscape puts you into a proper perspective.
1. A técnica como "ritual da aparição"
O que procurarei, desde já, analisar em James Benning é a forma como a tecnologia "se intromete" na paisagem não tanto num sentido "desfigurador" mas mais como pura entrada em campo ou aparição que auto-comenta a ironia que assiste, hoje, em tempos de desmaterialização do nosso mundo, a todo e qualquer indício da passagem humana. Como se o seu cinema materializasse o acesso a um olhar da Natureza sobre o mundo humano, dizendo-nos pela simples manifestação deste último quão vão, impositivo, sobranceiro e até desprezível é o modo como se faz presente, isto é, o modo como se "põe em cena". Um problema físico, metafísico ou um problema puro de mise en scène?
A resposta, que tentarei fundamentar, passa por dizer sim às duas hipóteses, mas começando por dar especial atenção àquilo que talvez seja menos óbvio: os filmes de paisagens de Benning respondem aos problemas do mundo tanto quanto respondem aos problemas do cinema. E quando digo "respondem" digo "reagem", isto é, não se limitam à fórmula das obras-postais com imagens bonitas de sítios exóticos, paraísos terrestres para consumo doméstico (o "sair de casa cá dentro" de todas as salas de cinema deste mundo); não, digo "agem" e de forma continuada sobre a nossa percepção do mundo. Trata-se menos de uma contemplação que de uma contemplacção, leia-se, um cinema que pela afirmação do projecto-paisagem (= de uma paisagem projectada na tela) faz da contemplação sobre a mesma a fonte da sua acção crítica (= política).
O facto de se apontar uma câmara para uma paisagem significa, no cinema do americano, a produção de um sentido que invariavelmente desfecha num problema inerente não ao facto-paisagem mas ao facto de "se estar a filmar uma paisagem", isto é, ao "por quê" desse acto que, com a constituição de uma história do cinema e a formação dos primeiros estudos fílmicos, foi roubando inocência às famosas primeiras "vistas" do cinematógrafo dos irmãos Lumière, a quem Benning soube levar à letra a ideia de um "olhar [que] passeia, se perde e se dissolve, em suma, se exerce num campo" (Aumont, 2001: 43). É que, hoje, ninguém – nem mesmo os Lumière e de nada lhes vale a morte – pode levar ao ecrã uma realidade tão imediata como uma paisagem sem fugir às razões estéticas e, até, políticas desse acto. O facto de continuarmos assombrados – e se calhar cada vez mais assombrados! – com L’arrivée d’un train à la Ciotat à Estação de Ciotat explica parte da questão.
No que diz respeito à técnica, encontro boa parte destes problemas em 13 Lakes (2004), filme composto por uma série de planos com onze minutos de treze lagos norte-americanos, dos quais destaco, para esta análise, aqueles onde "entram em cena" as motas de água em trajectórias circulares (= Salton Sea); uma fila de carros numa ponte sem fim, qual carreira de formigas, e um avião denunciado nos céus pelo som que emite[2](= Lake Pontchartrain); e dois navios, um de carga (= Lake Superior) e outro de transporte de pessoas (= Lake Powell). Estes veículos normalmente interrompem ou "entrecortam" a harmonia e placidez, antes da Natureza, do próprio plano.
Salton Sea Lake Superior
Lake Pontchartrian Lake Powell
Algo semelhante se passa na galeria de quadros atravessados pelos comboios pós-lumièrianos de RR, que rasgam a paisagem com o seu traço visual e sonoro – porque o comboio não é mais do que isso: um tracejado desenhado pelo homem sobre o espaço. "(...) [Os meus] filmes", descreve James Benning em entrevista (MacDonald, 2006: 249), "estão muito mais envolvidos com a referência ao início do cinema, quando as pessoas punham um rolo na câmara, fechavam-no e deixavam a câmara rodar continuadamente, registando o comboio a chegar à estação por quanto tempo o rolo deixasse./ Os meus rolos são maiores que aqueles que os Lumière usavam, mas a ideia é a mesma". A forma como algo aparece, o tal modo de se fazer presente, lembra a história do "ritual de aparição vis-à-vis de desaparição" de Serge Daney. Convém contextualizar, começando pelo princípio.
Em 1981, Serge Daney (2004: 91-93) escreve para o jornalLibération dois artigos que se viriam a tornar imprescindíveis a qualquer estudioso de televisão e marketing político: no dia 21 de Maio, redigiu «Um Ritual da Desaparição», dois dias depois lança «Um Ritual da Aparição».
O primeiro texto analisa a forma como Giscard D'Estaing se despediu em directo dos franceses, dizendo "boa sorte França" e saindo de campo, deixando o espectador "suspenso" num plano vazio e silencioso. Daney analisa esta ausência como uma tentativa de Giscard encenar a sua partida, sendo que o resultado foi, para o crítico francês, a perfeita demonstração do poder do fora de campo ou a expressão sublime da ideia segunda a qual se ocupa o espaço imagi(n)ário da televisão ou do cinema como se ocupa um território.
Em resposta à desaparição de Giscard, o vencedor das eleições de 1981, François Miterrand, encena aquilo que Daney (2004: 93-95) vai chamar de "ritual da aparição": um pequeno filme que anuncia – e enuncia – o começo do mandato de Miterrand como presidente da França. Se Giscard optara por "marcar terreno" saindo de campo, Miterrand opta por ser aquele herói que entra, determinado, em cada plano. À medida que a narrativa avança – o homem anónimo com apenas flores nas mãos visita o Panteão e deixa-as nos túmulos dos seus ídolos – vamos reconhecendo aquele "homem da multidão" como "o próximo presidente da República".
De que modo interessa convocar o pensamento de Daney e, em particular, esta distinção para o nosso trabalho de análise ao papel que a técnica ou a tecnologia desempenha no cinema de Benning? Desde logo, interessa porque dificilmente encontramos imagens que joguem melhor com a ideia, cara a Daney, de cine-postal do que as do cineasta norte-americano. Não que sejam imagens bonitas ou recuerdos de lugares memoráveis, mas por serem, tal como Daney afirmou, pre-textos para um "andar/viajar com os olhos", seja para sítios distantes, seja, muito bazinianamente em profundidade, dentro do próprio plano – e de novo, regressamos às "vistas" dos Lumière, mas, sublinhe-se, com um redimensionamento do papel da paisagem...
Por outro lado, o fora de campo é trabalhado sonora e visualmente por Benning como em nenhum outro cinema: a sua câmara estática, que parece "ganhar raiz" sobre o lugar onde filma, alimenta-se, vive, da excitação dos limites erógenos doframe, porque não sabemos nunca de onde e se "entrarão" em campo elementos novos e estranhos ao quadro, que tornem o postal ou o "slide de viagem"[3] num verdadeiro e inequívoco pedaço de cinema. Veja-se como em Sogobi ou no mais recenteRuhr, por vezes, a estaticidade do que é filmado produz a ilusão equiparável a um freeze frame "imposto" à imagem ou a um devir fotográfico do medium...
No seu Abecedário, chegado à letra "d", Deleuze fez associar o seu conceito de desejo à ideia de paisagem. Depois de sentenciar que nunca se deseja alguém ou algo mas sim um conjunto, o filósofo francês cita Proust para exemplificar: "não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher". O que se passa em Benning é que o primeiro e mais concreto objecto de desejo não é a rapariga mas a paisagem propriamente dita, contudo, com a paisagem vem também um conjunto de coisas, seja a rapariga, seja, para o caso, e decerto menos airosamente, os produtos mecânicos do homem. O desejo, como o quadro, é, para Deleuze, a construção de um agenciamento de coisas e o que Benning desmonta (ou desconstrói) é a ideia de "plano de conjunto" ao fazer deste não a sinalização de um "lugar da acção" mas a acção propriamente dita.
Se outro realizador optaria por um grande plano sobre o veículo que atravessa a paisagem – porque o deseja antes de qualquer outra coisa ou apesar de tudo o resto – Benning não oscila minimamente e permanece com a mesma escala: o plano de conjunto (imagem-percepção) é sempre um grande plano no seu cinema (imagem-afecção), pelo que não podia haver close-upsneste cinema, apenas construções de agenciamentos de "paisagens de paisagens" que envolverão, ocasionalmente, coisas que as atravessam tentando o estabelecimento de um lugar... Dito de outro modo: os mais distraídos diriam que o cinema de Benning é uma colecção de establishing shots, mas até estes reconheceriam, se pensassem duas vezes, que o que já está estabelecido sempre é a paisagem, e o que se tenta, quase sempre sem sucesso, "estabelecer" é o tracejado humano "narrativizante". "Não era tudo sobre comboios", nota Bening numa sessão Q&A a propósito de RR (disponível na edição em DVD do filme pela editora Edition Filmmuseum), "podíamos olhar à volta do frame e começar a ver algo para lá disso... (...) O critério principal foi tentar arranjar o maior número de paisagens diferentes que eu conseguisse".
Quando Benning, perguntado sobre os seus filmes, fala em obras autobiográficas e políticas não estará longe da ideia de um cinema que constrói, antes de mais, paisagens afectivas ou afectantes pelo simples facto heisenberguiano de se apontar uma câmara para elas. O próprio acredita que a imagem transmite sempre mais do que a imagem apenas: "(...) Eu penso que inconscientemente tudo o que se investe na produção da imagem, de certo modo, acaba na própria imagem. Isto pode ser um statement arrojado, mas eu não penso que o público consiga explicar os factos exactos; é uma coisa subtil" (MacDonald, 2006: 245). Há aqui como que uma tentativa ou a esperança de instituir, com a cumplicidade nem que inconsciente do público, um cinema que deseja e faz desejar a paisagem.
Ora, Benning na maior parte das vezes, faz como os Lumière em L’arrivée d’un train à la Ciotat ou La sortie des usines Lumière – título que, aos nossos olhos de hoje, ironiza a ideia de saída, já que nele tudo constitui uma "entrada em cena" –, a saber: investe mais em mostrar a chegada (aparição) do que a partida (desaparição) do objecto-máquina. Interessa-se mais pelos efeitos, diríamos retóricos ou discursivos, da sua "entrada em campo" do que da sua "saída de campo".
O espectador diz para si, exclamando, "ali está ele/ela, um(a)...!" quando esses artefactos da civilização furam a placidez da paisagem, como que completamente indiferentes a ela – a aquele mundo não tanto originário mas, mais que isso, fundamentalmente original (o filme está "nele", o resto são meros "efeitos especiais"). Esses artefactos civilizacionais protagonizam, quase sempre, "aparições no espaço", como se o fora de campo estivesse de visita, ou melhor, de passagem pelo campo das imagens virgens, que responderão a eles com igual indiferença, mantendo-se enfim imunes à sua passagem. Logo, pode haver presença e ausência de algo, mas não chega a haver fantasma da ou, usando um termo de Daney referindo-se a Giscard, "eco" da sua presença ausente ou ausência presente na paisagem, talvez porque já antes – e sempre – o que aparece é, desta feita ao contrário dos Lumière onde tudo é o "comboio que aí vem", a própria paisagem.
Quando o paquete ou a mota de água ou qualquer comboio de RRdesaparece no horizonte não ficamos convencidos dos efeitos da sua passagem – é que a paisagem é soberana em Benning, sempre. O que se passa é a satisfação pelo cinema, acção que se diria redentora num sentido kracaueriano, de uma fantasia antiga do homem da locomotiva: "com o desenvolvimento dos meios de transporte rápidos [como a locomotiva], o olho será fantasiado como um órgão destinado a "engolir" paisagens, no próprio ritmo em que esses transportes engolem quilômetros e minutos" (Aumont, 2001: 64 ). Ou é isso ou é exactamente o contrário: não é o olho que engole as paisagens de Benning mas são estas que engolem o olho. O próprio sentido anglófono de fuga, deland-(e)scape, não se inscreve bem num cinema onde tudo "aparece" – e daí o seu milagre... –, começando pela própria paisagem que nos aparece "cheia de mundo", apesar de expurgada da nossa, enfim particularizada, mundanidade.
O que quero eu dizer com tudo isto? Talvez que Benning fale muito concretamente de uma ocupação sempre-estrangeira de uma paisagem que se quer salvaguardada na imagem; de uma ocupação que não se quer "normalizada", na medida em que o objecto que aparece "passa" pela paisagem que é independente daquele, porquanto quando aquele aparece esta já é toda ela presença. Benning torna a paisagem sempre mais afirmativa (= desejável), logo, impede a respiração da ausência fantasmática do objecto técnico que indicia mas não "confirma" – e este "mas" é muito importante, como veremos no ponto seguinte – a presença humana. O comboio ou o paquete pode ser "fantasmático" – porque a sua aparição digladia-se com a aparição-já-feita-presença da paisagem – mas a sua ausência não deixa rastro – a presença da paisagem "vence" sempre as aparições não desejadas, menos desejáveis, da técnica.
Qualquer um destes objectos, usando aqui uma imagem de Hannah Arendt, é produtor do nosso mundo, ou seja, por resultar da técnica e ao permanecer no tempo, produz o mundo do Homem, aquele ser que, ao contrário dos outros animais, consegue pelo trabalho (e pela, não aqui desenvolvida, acção) acrescentar mundo ao mundo que a Natureza, desde a nascença, lhe oferece. Quando se lê trabalho pode ler-se técnica na passagem em que Arendt (2001: 20) escreve o seguinte: "O trabalho é a actividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie (...). O trabalho produz um mundo «artificial» de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural."
A lógica da aparição é a que predomina, não a da desaparição, para que Benning nos dê a ilusão de podermos olhar uma paisagem através do mundo anterior à técnica, logo, anterior ao Homem. Na época do digital, da robótica, da muito debatida desumanização do Homem pela técnica, Benning produz uma nuance singular: faz-nos olhar com os olhos desse mundo anterior ao Homem – o da Natureza, enfim – para esse mundo desumanizado pela ou que tende a ser só técnica. O homem está sempre ausente porque o olhar de Benning é sempre um olhar que comenta a presença do homem pela aparição não deste mas das máquinas que o fazem representar na paisagem, como se elas – já na sua ausência – continuassem agora a história do Progresso[4].
Trata-se, portanto, de uma crítica ao Progresso e, nesse particular, a escolha do comboio como "segundo protagonista" de RR a seguir à paisagem é muito significativa, já que a locomotiva foi, como mostra por exemplo Zygmunt Bauman emLiquid Modernity, o primeiro medium industrial, isto é, mecânico e semiautomático, a conceber sozinho toda uma nova concepção espaço-tempo. O cinema haveria de mimar, como tenciono desenvolver no segundo ponto, a transformação perceptiva operada pelo caminho de ferro – e tornar-se, talvez, no garante técnico do "progresso e da harmonia entre as nações" de, pelo menos, toda a primeira metade do século XX (até ao surgimento da televisão), equivalendo-se ao papel da locomotiva no século XIX.
Benning incorpora nas suas imagens aparentemente inocentes de paisagens a crítica que alimenta as formulações mais disfóricas sobre o papel crescente que a técnica desempenha na nossa sociedade, de Baudelaire ou Benjamin a McLuhan ou a Flusser, passando obviamente por Arendt. Por outras palavras, o cinema de Benning faz testemunho de um homem reduzido à técnica, de um homem que despreza o "mundo anterior" que o originou.
A crítica de Benning é tão concreta quanto isto, porque, não haja ilusões, a contemplação não está imune ao exercício crítico, estético e político. Aliás, Benning põe a contemplação ao serviço de uma crítica ao Progresso. Essa crítica faz-se em nós a partir das suas imagens "puras" de aparições estrangeiras de navios e comboios onde o homem se faz representar na paisagem, como que reduzido ao indício (aoindex diria Peirce) dessa passagem. Cinema de contemplação? Não, cinema por uma contemplacção do espectador-viajante.
2. O digital ou o suicídio como paisagem
Proponho começar por fixar a ideia segundo a qual o comboio é a figura-síntese da experiência cinematográfica. Em O Olho Interminável, Jacques Aumont traça um interessante paralelismo entre a experiência pioneira das viagens de comboio e os relatos dos primeiros espectadores de cinema, que viam no novomedium uma forma de “transporte” – para viagens – mais do que um meio expressivo de comunicação. Deste modo, de "olho móvel e corpo imóvel" (Aumont, 2001: 55), o espectador do cinema e o viajante da locomotiva se equiparavam. O comboio "continua a ser o lugar prototípico", escreve Aumont (2001: 54), "onde se elabora, em pleno século XIX, o espectador de massa, o viajante imóvel. Sentado, passivo, transportado, o passageiro (...) aprende depressa a olhar desfilar um espetáculo enquadrado, a paisagem atravessada." Mais à frente, o autor francês complementa esta ideia afirmando que tanto o sujeito do cinema como o sujeito da estrada de ferro são "– Freud e Benjamin estão de acordo sobre isso – (...) um "sujeito de massa", atormentado por um ser-de-espectador anônimo e coletivo. (...) Em suma, [um e outro são] um sujeito neurótico, ou passível de ser neurotizado, ou seja, moderno. E o cinema, reconhecido, fará da locomotiva sua primeira estrela" (Aumont, 2001: 55).
Ainda que hoje não se discuta que o cinema não é um meio de transporte mas, no limite, um meio de comunicação, nos primórdios da sua existência, o efeito das imagens projectadas na grande tela para uma plateia de pessoas sentadas na sala escura despertou nestas, antes de tudo, a ilusão de "estarem a andar de comboio". Mesmo na cabeça dos pioneiros do cinema, a confusão era patente. Os grandes panoramas do século XVIII e XIX, sobretudo os "moving panoramas" americanos, onde uma imagem que chegava a ter três milhas de comprimento era desenrolada à frente de milhares de pessoas, combinavam a ideia de viagem associada à locomotiva com a dimensão "dispositiva" ou estética do cinema (Aumont, 2001: 56-57). No seu artigo «Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo», André Parente relembra um dos primeiros dispositivos cinematográficos testados nos indefinidos primeiros anos da invenção dos Lumière. Inventado pelo norte-americano William Keefe, os Hale's Tours eram salas de cinema sob a forma de um comboio que, conta Parente, seriam exploradas comercialmente por George Hale. "O edifício principal simulava uma estação [de comboio] (...), e os empregados, de uniforme, introduziam os espectadores para "viagens" de meia hora, em salas de sessenta lugares" (Parente, 2007: 18).
Na própria linguagem encontramos sinais curiosos deste paralelo, seja no tracking shot inglês, seja no "passar um filme" em português (como a paisagem que passa, veloz, ao nosso lado, do lado de lá da janela da cabine do comboio) ou ainda, complementarmente, na ideia de travelling associada ao movimento da câmara. Estrada, paisagem e viagem. O cinema faz-se território em movimento um pouco como o comboio que "abria" geografias desconhecias e as planificava, ou seja, "punha em plano" num mapa. Não restam dúvidas de que o comboio e o cinema estavam destinados ao grande encontro na primeira projecção de imagens em movimento da história.
Com efeito, o comboio, o meio de transporte de pessoas, é aquele que mcluhaniza L’arrivée d’un train à la Ciotat dos Lumière: afinal, a experiência do cinema era uma extensão fenomenológica da experiência das grandes viagens de comboio – mais até, se calhar, do que um desenvolvimento natural da fotografia. O cinema nasce com a imagem do comboio, que, por sua vez, como já aflorei, é o símbolo cimeiro da modernidade tecnológica e da política de ocupação territorial – oswesterns americanos encarregaram-se de traçar a genealogia da locomotiva a vapor, a propósito dos processos de disputa e conquista do território ao inimigo índio.
Não espanta por isso que entendamos o comboio como sendo algo mais do que apenas "mais um" meio de transporte – desight seeing. Cedo se percebeu que este é, também e acima de tudo, um dispositivo de poder e não espanta por isso que também vejamos no cinema – ou nos media fotográficos – um igual mecanismo de ocupação do espaço, não-terrestre, do imaginário, assente nos trilhos infindáveis do inconsciente[5].
L’arrivé d’un train à la Ciotat (1895) de Auguste & Louis Lumière
Posto isto, e dando sentido à máxima de Marshall McLuhan, noL’arrivée d’un train à la Ciotat temos um bom exemplo de como o "meio é a mensagem": o cinema auto-reflecte-se na sua imagem primordial – o comboio – para celebrar o seu próprio nascimento. Como bom produto lacaniano da modernidade, o cinema nasce olhando-se ao espelho, fazendo desse gesto auto-referencial uma espécie de crítica para-psicanalítica da modernidade. Só temos consciência disso hoje, ultrapassado que está o trauma da imagem realista que pôs em movimento aquele como outros cenários corriqueiros do dia-a-dia – a "monstruosidade do quotidiano e do banal" é, contudo, assunto que ainda não está inteiramente dissecado e daí talvez o retorno de muitos cineastas contemporâneos às coordenadas do cinema primitivo.
Assim sendo, L’arrivée d’un train à la Ciotat é talvez mais do que o seu título aparentemente inocente possa dar a entender; o primeiro filme do cinematógrafo é a chegada de um novo medium e a partida de um outro. O comboio não acabava, mas o cinema irrompia como meio de transporte ainda mais expressivo, um rival de peso, porquanto tinha a capacidade de engolir todos os outros – um pouco como o que acontece hoje com a convergência multimediática propiciada pelo digital, o cinema vinha "totalizar a nossa experiência". Um novo meio de transporte, um novo meio de comunicação, um novo instrumento de poder.
O que é que Benning e RR têm a ver com toda esta exposição? Tudo. Trata-se de uma colagem de planos-sequência totalmente imóveis (a câmara é a primeira a condenar o espectador à imobilidade do comboio...), uns mais longos do que outros, que começam com a entrada em cena de uma locomotiva e acabam com a sua saída do "quadro"[6]. Os comboios têm, contudo, uma dimensão (ainda) mais fantasmática que o comboio dos Lumière, visto que Benning privilegia os comboios que transportam mercadorias em contentores "anónimos", formas de diversas cores que desfilam, ordeiramente, rasgando (e interrompendo) a beleza de (extra)ordinárias paisagens naturais – não foi Godard que disse que, ao contrário de Méliès, os Lumière buscavam o extraordinário no ordinário? Em RR, contudo, não há sinal de vida humana. Este comboio de Benning, desumanizado, "automático", infinito, põe em confronto, ou melhor dizendo,actualiza a querela Lumière-Méliès, ao mesmo tempo que criticamente desactualiza o novo mundo fantasmático do digital. Novo, escrevi, mas será nova a coisa nova que coloca questões antigas?
La voyage à travers l'impossible (1905) de Georges Méliès
No seu Theory of Film, Siegfried Kracauer sai em defesa da tendência realista em contraponto com a tendência formativa, pondo em confronto dois planos que têm como denominador comum a imagem do comboio. Diz Kracauer (1997: 32) que “(…) o comboio em L’arrivée d’un train à la Ciotat é a coisa verdadeira, ao passo que o seu correspondente em La voyage à travers l’impossible de Méliès é um comboio de brincar tão pouco realista quanto o cenário que este atravessa”. O comboio de brincar de Méliès não era considerado "the real thing", logo, seria uma mentira que não caberia ao cinema perpetuar, porque o cinema servia para "iluminar" o nosso caminho em direcção ao real-absoluto (a verdade) e não encobri-lo de fantasias e ilusões humanas (a ficção).
A maturidade da linguagem cinematográfica parecia depender do material de que eram feitas as locomotivas "imagi(n)árias", mas olhando para os comboios de Benning parece que encontramos a síntese destas duas tendências: sim, os comboios estiveram ali e, sim, não são feitos de plástico ou papier maché; por outras palavras, são "the real thing", mas, por outro lado, o que é que estes comboios têm a ver com o comboio dos Lumière, o comboio do século XIX, que transportava famílias para longe, espalhando a população pelo território, ou que muito romanticamente separavam para sempre casais de namorados – ele ia para a guerra e ela despedia-se dele, na Gare, dizendo adeus com um lenço branco, ensopado em lágrimas, na mão? Os comboios de Benning são pesados, duros, mas também se pareceram com brinquedos tal como são "mostrados" pela câmara. A pergunta "haverá alguém a conduzir esta máquina já totalmente desumanizada e indiferente à vida natural que a envolve?" acentua a sua dimensão perturbante e fantasmática, ao mesmo tempo que comenta ou se deixa comentar pela envolvência – e até aqui vai a subtileza crítica de Benning.
RR (2007) de James Benning
Estes objectos-espaços sem vida lembram as salas de cinema em que centenas de cadeiras vazias, por levantar, assistem – sem magia que as anime... – à projecção de filmes... O comboio e a sala de cinema apresentam-se, hoje, cada vez mais como "não-lugares" remetidos ao esquecimento pela sobrelotação virtual do ciberespaço e pela reinante cultura ultra-sedentária do on demand – do sofá e dos TV dinners. Contudo, os bens – por exemplo, as coisas de que são feitos os sofás e os TV dinners–, esses, têm de ser transportados de um sítio para outro tal como, defendem os "resistentes" que se alimentam ainda de uma certa "ilusão romântica", as salas têm de continuar a projectar viagens para cadeiras vazias. Já Daney, num memorável texto intitulado «Por uma cine-demografia», localizava a crise do cinema no campo não da geografia mas da demografia: "A crise das salas de cinema torna-se incontestável no dia em que um limite é alcançado: tão poucas pessoas na sala quanto as personagens que estão no filme".
Os tempos são mais favoráveis à experiência voyeurista e individual – de peep show – do Cinetoscópio de Edison, por um lado, e à sobrelotação humana nos primeiros filmes do cinematógrafo, por outro. Benning oferece a solução: para salas vazias, projecta sobre a paisagem as primeiras evidências (do inglês evidence) do suicídio da espécie humana.Landscape Suicides? Sim, mas mais que isso: "RR ou o suicídio como paisagem ".
É desolador assistir a este suicídio não da mas na paisagem moderna, onde o papier maché de Méliès nunca se pareceu tanto – ou parece-se mais, pela primeira vez! – com o concreto "the real thing". RR põe-nos a pensar sobre onde estão, onde param..., os objectos de desejo e de "disputa" filosófica caros aos cineastas/teóricos primitivos e como podemos caracterizar a condição da imagem cinematográfica num mundo onde a ideia de "lugar" ou de "pessoa" está cada vez mais abstractizada pelo fenómeno do digital.
Luís Mendonça
[1] Citação extraída da entrevista de Benning a Scott MacDonald no livro A Critical Cinema 5, 2006, p. 232.
[2] Como grande experimentador audio/visual que é, Benning também reserva um momento de "corte" entre a imagem e o som no 6.º plano de 13 Lakes relativo ao Lake Okeechobee. Ouvimos o barulho de um comboio a passar mas Benning não o mostra visualmente. Também no incrível penúltimo plano sobre o Crater Lake, se ouvem tiros ao longe, sem sabermos ao certo de onde virão. O trabalho sobre o som em Benning, neste particular, faz-me lembrar um dos mais inspirados aforismos de Robert Bresson (2000: 72) do seu Notas sobre o Cinematógrafo: "O olho (em geral) superficial, o ouvido profundo e inventivo. O apitar de uma locomotiva dá-nos a visão de toda uma gare".
[3] Em entrevista (MacDonald, 2006: 250), Benning conta que o processo de montagem dos seus filmes se faz com recurso a fotos ou slides dos seus planos que este dispõe, como um texto, uns ao lado dos outros. A relação do cinema de Benning com a imagem fixa, a pintura e a fotografia, levar-nos-ia muito longe, pelo que remetemos o leitor para o texto que Raymond Bellour publicou naTrafic, na Primavera de 2010, intitulado «Smithson, Benning».
[4] Importaria, neste ponto, trazer à baila o filme de Allan Sekula e Noel Burch, The Forgotten Space, que mostra o mundo como uma complexa rede de trânsito de mercadorias, onde o elemento humano parece estar cada vez mais ausente. Igualmente interessante, ou até de modo mais significativo, seria realizar a comparação do cinema de Benning com o do seu cineasta-irmão, o norte-americano Peter B. Hutton – deixo essa missão para futuros trabalhos.
[5] A este propósito, no seu O Cinema ou o Homem Imaginário, Edgar Morin escreveu que o inconsciente, esse conceito forjado pela psicanálise, que por sua vez, é uma desmontagem quase mecânica dos processos da mente, funciona como uma espécie de cinema em miniatura que temos na cabeça.
[6] Este não será o espaço para analisar a ironia profunda que perpassa parte – se não toda – a obra do norte-americano. Em RR, ela atinge o delírio burlesco quando, já volvida quase uma hora de filme, num plano "tirado" do topo de um monte sobre uma ponte férrea que atravessa o rio, vemos uma luz ao longe. O espectador dirá "vem aí mais um comboio, parecido ou igual aos outros" – isto é, robusto, infindo e ruidoso. Mas não: a "montanha pare um rato" a meio do percurso quando nos apercebamos que o que nos "aparece" é um carrito que circula sobre o caminho de ferro. É o momento The General de RR – traço irónico que apenas afloro neste análise, deixando o seu aprofundamento para "outras núpcias".
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terça-feira, 12 de março de 2013