No primeiro plano do primeiro filme: o nome de um vilarejo sobre um mapa: Le Blanc. É uma direção a seguir para cada filme que virá, uma orientação a manter. É isto o que a jovem contempla pela janela, o imóvel branco diante dela; o cineasta solitário detrás de sua câmera ( primeiro super 8, depois digital), é isto o que ele olha, o branco, as coisas que retém a luz, o acontecimento sem limites e que, quando chega, se chegar, excede todo cadre: um para além da janela, para além do plano. Todas as janelas da obra de Jean-Claude Rousseau, e há muitas em seus filmes, contém esta tensão que se encaminha a este além, que podemos apenas indicar, mas nunca absolutamente nomear ( daí o fato de que a linguagem, de um filme a outro, se reduza a conversações de tropeço, insignificantes); todas nos orientam para o evento que chega, que acaba talvez por vir às custas do tempo, da duração. Assim, um dos mais belos planos de toda a obra é, em Keep in touch, aquele dos patinadores sombrios sobre a superfície branca do gelo: uma longa agitação do negro sobre “ O Branco”, um certo estado da presença e nada mais. Este é o caminho único e sempre recomeçado deste cineasta essencial. Um caminho aliás paradoxal, uma imobilidade de trajetória em geral, onde os quartos de hotel, uns após os outros, de Venise n’existe pas a Lettre à Roberto, valem como indicações de deslocamento. Deslocamo-nos, e agora esperamos. Este “esperamos” é, claro, o próprio cineasta, que se filma à vontade, com freqüência de costas, mas trata-se de qualquer um 1 também: um homem médio, indiferente, sem qualidades, um funcionário de si mesmo, ocupando este lugar ( ele mesmo) como uma profissão que se exerce, um dever, como uma folha que folheamos indiferentemente num magazine. Jean-Claude Rousseau continua uma certa linhagem de herói da “desaparição” 2, que olha pela janela, e assim vai: fora, há um mundo que, às vezes, por um milagre, é branco ou luminoso, e portanto eu escrevo ( eu filmo) que existe um mundo às vezes branco: esta é a razão de tantas folhas virgem que assombram seus filmes, estas extensões de neve em Keep in touch, estes pedaços de bobinas super 8 que constituem refrações claras no negro, este caderno vazio de Contretemps. E também estes planos inumeráveis e repetidos que filmam a passagem do tempo como uma pura aventura da luz. Isto quer dizer que o mundo para Rousseau, o mundo presente, carnal, real, não possui interesse ou sentido? Claro que não. O mundo real possui um sentido, justamente.
O mundo real também designa uma direção: daquilo que se ausenta, que buscamos invariável, infatigavelmente à janela. Desejo ou Eros são os nomes desta ausência, desta presença ainda a conquistar, a possuir. Desejo vem do latim desiderare, literalmente “cessar de ver o astro”. Cada filme de Rousseau é distendido em direção à janela como um empregado espera que as horas passem, uma mulher que os homens voltem, como um sentinela espreita as estrelas. Cada filme põe uma questão polimorfa: onde está o astro? Onde, tua voz ( a do destinatário epistolar, por exemplo, que La valée close não nos deixa ouvir)? Onde, teu corpo? Teu rosto? Onde está o teu rosto? Pois Rousseau não possui fascínio distinto do que entretinha Simone Weil; ele faz de seus filmes a experiência de uma vida radical, ou antes, a experiência radical de viver assombrado pelo interesse constante pela “graça”, ou seja, do dom incompreensível daquilo que nos falta. Os filmes dizem todos a mesma coisa, rondam sempre em torno desta mesma questão do lugar inencontrável. “Onde?” Sem dúvida, certos filmes ( Jeune femme à la fenêtre lisant une lettre ou Les Antiquittés de Rome) propõem antes uma resposta espacial: são homenagens à geometria e às formas abstratas, constroem uma localidade de linhas para a chegada do acontecimento ( eis o porque do mapa geográfico que abre a obra). Outros ( Vénise n’existe pas, Keep in touch, ou Juste avant l’orage) buscam antes a resposta no lento recolhimento da contemplação: barcos que passam sobre a laguna, variações da luz, lentidão de uma refeição, patas de pássaros pousadas sobre a neve: a questão “onde?” se experimenta agora no desafio de permanecer ali, a conservar sua coragem de permanecer.
É uma dicotomia um pouco especiosa, pois evidentemente existe tempo no espaço e inversamente, mas enfim, é uma forma cômoda de traçar as linhas de tensão dos filmes, de classificá-los segundo certas lógicas de construção.
Depois chega Clément, o bem nomeado. Clément é o herói de um dos últimos filmes ( uma outra maravilha) de Rousseau: Faibles amusements. Ele encarna, pela primeira vez, o nome, o rosto e o corpo do desejo. Embora o filme conserve uma certa ambigüidade voluntária ( o cineasta e o herói compartilham o mesmo quarto, o mesmo leito?), fica claro, no entanto, em um plano magnífico, que eles não compartilham o mesmo olhar: um ( Rousseau), sempre postado em sua invariável janela, à espera do que ele se priva de ver; o outro ( Clément), do lado de fora, no balcão, tão longe, tão próximo. Esta irrupção de um rosto preciso muda portanto o caráter do dom, mas não cura a ausência.
Certo, temos um avanço, um passo para, e Faibles amusements é o primeiro filme onde Rousseau filma seu próprio corpo em deslocamento ( no caso, num barco), ao invés de filmar de costas os signos do deslocamento- carro, caminho, barco, hotel, etc. Um passo, portanto, foi dado: a graça tornou-se palpável: e daí? é preciso ainda saltar através da janela, é preciso ainda saltar.
Stéphane Bouquet, junho 2005.
Tradução: Luiz Soares Júnior. (in Blog DICIONÁRIOS DE CINEMA)1. No texto original: On, c’est le cinéaste certes (...) mais c’est “on” aussi bien. On é um pronome de indeterminação em francês que se refere ( ou refere) a qualquer ( um?), a nenhuma pessoa ( pronominal) em específico. Rousseau filma Rousseau, mas o filma como alguém que pertence ao horizonte indeterminado, movediço e nebuloso do on: como um qualquer.2. effacement: apagamento ( de traço), desaparecimento, desaparição