A RELIGIÃO NO CINEMA DE CARL DREYER
Roberto Acioli de Oliveira
“Dreyer gostava de lembrar que a condenação à intolerância dava uma grande unidade temática à sua obra”
Jean Sémolué (2005: 159)
O cineasta dinamarquês Carl Theodor Dreyer (1889-1968) Iniciou sua carreira ainda na época do cinema mudo, sendo responsável por filmes como A Paixão de Joana d’Arc (La Passion de Jeanne d‟Arc, 1928). Último filme mudo de Dreyer é quase inteiramente centrado em close-ups do rosto humano, como nunca havia sido feito antes e não foi repetido depois – película que muito impressionou o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini ainda em sua juventude (BERTELLI, P. 2001: 35).
O primeiro filme sonoro de Dreyer foi O Vampiro (Vampyr, 1932). Do qual se poderia dizer que menos é mais, levando-se em conta a curiosa economia de palavras em seus diálogos numa plena época de frenesi auditivo com o lançamento do cinema sonoro – o número de diálogos também será limitado em Dias de Ira (Dies Irae/Vredens Dag, 1943), tornando-se mais numerosos em A Palavra (Ordet, 1954), e mais ainda em Gertrud (1964) (SÉMOLUÉ, J. 2005: 169).
Se em A Paixão de Joana d’Arc o tempo é puramente cronológico e os acontecimentos se impõem, em O Vampiro ele reúne pressentimentos e dúvida. Para Jean Sémolué, esse é o menos predeterminado dos filmes de Dreyer. O Vampiro é uma adaptação, muito parcial diria Sémolué, de In a Glass Darkly, coleção de histórias curtas de Sheridan le Fanu (sobretudo Camilla e l’Auberge du Dragon Volant). Segundo Sémolué, a confusão relativa à “mensagem” de O Vampiro está ligada ao título de le Fannu: In a Glass Darkly (Como num Espelho, Confusamente). Esse título, como aquele do filme do cineasta sueco Ingmar Bergman, Såsom i en Spegel (que deveria ter sido traduzido por Como num Espelho, e não Através de Um Espelho), se refere à epístola de São Paulo aos Coríntios (XIII, 12): “Hoje, certamente, nós vemos como num espelho, de maneira confusa”. De acordo com Sémolué, mais do que a fidelidade aos elementos narrativos, o que conta é a fidelidade à atmosfera (Idem: 88, 93-7, 98, 184).
A atriz alemã Sybille Schmitz atua no papel da possuída Léone. O cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder se baseou na fase final da biografia dela para construir a protagonista de O Segredo de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1981). Sybille chegou a ser uma das favoritas de Josef Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler, antes de entrar para a sua lista negra. Depois da guerra, a atriz não conseguiu retomar a carreira e se suicidou em 1955 (ELSAESSER, T. 2005: 181).
Jean-Luc Godard homenagearia Dreyer em Viver a Vida (Vivre as Via, 1962), quando a protagonista vai ao cinema assistir A Paixão de Joana d’Arc – embora Antoine de Baecque esclareça que Dreyer não foi a primeira opção do cineasta francês (BAECQUE, A. 2010: 207-8). Outro cineasta francês François Truffaut homenageou Dreyer em A Noite Americana (La Nuit Américaine, 1973), quando Ferrand (o próprio Truffaut) abre um pacote. Em close, vemos desfilarem livros sobre os pais espirituais de Truffaut, Dreyer figurava entre Ingmar Bergman, Jean-Luc Godard, Roberto Rossellini, Alfred Hitchcock, Howard Hawks, Ernst Lubitsch e Robert Bresson. Quando o crítico de cinema André Bazin faleceu, Truffaut o homenageou publicando uma seleção de suas críticas em O Cinema da Crueldade. Lá constam comentários à Dias de Ira, A Palavra e A Paixão de Joana d’Arc. Na introdução ao livro, Truffaut resume bem a saga de Dreyer:
“Carl Dreyer foi o cineasta da brancura. A religiosidade dos temas escolhidos deu margem à ilusão, e não se percebe o suficiente a violência subterrânea de sua obra e de todas as dilacerações que lhe formam as engrenagens. Jean Renoir disse dele: „Dreyer conhece o homem melhor do que um antropólogo‟. Como o próprio Renoir, Carl Dreyer valorizou a sinceridade de seus personagens, cujas crenças são mostradas quase sempre em violenta oposição. Onze anos separam a realização de O Vampiro e a de Dias de Ira; existem treze anos de desemprego entre A Palavra e Gertrud – decididamente, a carreira de Carl Dreyer não foi muito mais fácil que a de [Eric von] Stroheim. Pelo menos, Ele teve a satisfação de exercer sua arte a te sua morte, sobrevinda pouco depois da apresentação em Paris de seu último filme, Gertrud” (BAZIN, A. 1989: XII-XIII)
Bazin destacou que a inflação de closes em A Paixão de Joana d’Arc serviria a dois propósitos apenas aparentemente contraditórios, mas no fundo complementares e que dão o tom da obra de Dreyer: misticismo e realismo 17- (Idem: 8, 27-8). Quanto a isso, o próprio cineasta dinamarquês foi categórico, embora tenta citado outro filme como exemplo:
“É absolutamente sem sentido dizer que eu sou um místico! O que as pessoas querem dizer com misticismo? O Vampiro é um filme completamente realista, ele apenas foi realidade numa atmosfera de estranhamento. Você não pode simplesmente separar o misticismo da realidade dessa forma. Como se misticismo fosse algo sobrenatural, para além do que é lógico e psicológico. Nossa definição sobre o que é misticismo e o que é realismo é estreita demais. Lógica e psicologia são dois pontos cardeais, tanto no coração quanto na política” **
A história de Joana, explicou Bazin, é centrada no embate de almas. Mas essa tragédia espiritual, onde todo movimento é interior, se expressa a partir do foco no rosto humano (o microscópio que é a câmera): vista de tão perto, a máscara da interpretação cai. Com este filme, em que Dreyer proibiu as maquiagens, Bazin afirma que passamos a dever-lhe a tradução direta da alma humana.
A Palavra é uma adaptação de uma peça de Kaj Munk, pastor- dramaturgo reconhecido nos países escandinavos e que morreu assassinado pelos nazistas em 1944 – Dreyer se dizia muito próximo das concepções de Munk (SÉMOLUÉ, J. 2005: 163). Bazin caracterizaria A Palavra como uma “metafísica do branco”. Um filme em preto e branco, com tons de cinza. Mas a referência absoluta é o branco, constituindo ao mesmo tempo a cor da morte e da vida (em A Palavra assistimos a um parto de natimorto e uma ressurreição). Articulando A Palavra com O Vampiro e Dias de Ira, Bazin concluiu:
“Nesse universo mais atento ao mistério, o sobrenatural não surge do exterior. É pura imanência. Ele se revela, no limite extremo, como ambigüidade da natureza, e antes de tudo, no caso, como a ambigüidade da morte. Nunca no cinema, e sem dúvida muito raramente em outras partes, a morte foi abordada tão de perto. Ou seja, ao mesmo tempo em sua realidade e em seu sentido. (...) o sobrenatural dos filmes anteriores procedia ainda do fantástico profano que alimenta toda uma parte do cinema alemão e nórdico. Nada mais, [em A Palavra], que se aparente ao maravilhoso. O sentido religioso do mundo escapa à sensibilidade. A Palavra é uma espécie de tragédia teológica, sem a menor concessão ao terror” (BAZIN, A. 1989: 28-9)
Diálogos Alucinantes
O Vampiro foi realizado em três versões (francesa, alemã e inglesa), o que significa dizer que muitas cenas foram filmadas três vezes (implicando eventuais variações incontroláveis nos gestos dos atores). Talvez uma quarta cópia tenha sido feita para a Dinamarca. Como resultado, não existe uma cópia mais completa do filme, uma versão considerada muito completa pode não contar com um ou dois planos que outra cópia, muito incompleta, possui. Esse labirinto de versões e cópias é responsável por muita dúvida e confusão em relação às cópias restauradas de filmes antigos. Em sua introdução ao filme de Dreyer, Charles Tesson sugere que o próprio Dreyer destruiu pistas desde o começo, não permitindo descobrir quais planos pertencem a que versões.
É seu primeiro filme falado, mas Dreyer não abandonou o uso de intertítulos. Além disso, os raros diálogos chegam a fazer crer que se trata e um filme mudo. Contudo, neste caso parece que o motivo foi a falta de experiência dos atores em relação aos idiomas escolhidos por Dreyer, aparentemente com o único objetivo de facilitar a difusão do filme em vários mercados. Por outro lado, Sémolué acredita que a raridade de palavras contribuiu para o clima de indecisão e opressão presente em O Vampiro.
Da mesma forma, o tom estranho dos intérpretes. Quando Gisèle chama três vezes por Léone ao ver sua irmã (que estava de cama) caminhando pelo bosque, Sémolué sugeriu que o som se assemelha ao de um pavão (um som ao qual não estamos acostumados a ouvir no Brasil...). Na versão alemã, o horror do sentido de uma frase se acentua por sua economia de palavras (como quando Léone diz: “Eu tenho medo de morrer... Meu Deus, Meu Deus!”). O monossílabo “blut” (sangue), pronunciado sem ênfase quando se nota o cocheiro morto na carruagem e a gota no chão, toma proporções aterrorizantes.
Tesson destacou uma característica de O Vampiro que em sua opinião foi poucas vezes explorada no cinema: a escuta. A maior parte dos diálogos desse filme não constitui trocas de enunciados. Cada frase é seguida de um silêncio que produz uma espécie de alucinação. O encontro entre Allan e o doutor, por exemplo, se assemelha a um diálogo de surdos. A propósito desse mesmo diálogo, o cineasta Jean-Marie Straub chamou O Vampiro de o mais sonoro de todos os filmes. Trata-se do filme de Dreyer onde a música desempenha um papel mais ativo, inclusive por não ser ouvida quando o cineasta pretendia acentuar algum ruído (que, como vimos, pode até mesmo incluir algumas palavras).
Caixão com Janela
Apesar desta questão das várias versões, Sémolué considera O Vampiro um filme mais difícil do que A Paixão de Joana d’Arc. Dreyer faz referências à magia, metempsicose e metamorfose. Ao contrário de outros filmes de Dreyer que abordam o sobrenatural e a bruxaria, como a já citada Paixão, Dias de Ira e A Palavra, com exceção de uma suposta freira que cuida de Léone, não existem padres em O Vampiro. Embora o livro sobre vampiros (atribuído a um dominicano na versão francesa) e algumas passagens e diálogos (“pelo amor de Deus”, “minha alma está livre”) introduzam certa religiosidade – o roteiro previa crianças cantando no fim: “A auréola do anjo de Deus afugenta as sombras da noite”. Apesar de tudo, assim como Joana, Allan cumpre seu dever sem hesitar – seria ele a personificação da consciência humana em busca do Bem?
Muitas vezes o próprio Dreyer definiu o clima de O Vampiro como “sonhar acordado”. Dentre seus filmes, é o único que faz referência a seres fantásticos e sonhos – e por vezes os relacionaria às teorias junguianas sobre o inconsciente coletivo. Mesmo com todo um esquema alucinatório terrificante, O Vampiro não é um filme de pavor. A velha vampira Marguerite Chopin não parece um monstro, tão somente uma figura autoritária. Noutro famoso filme de vampiro, Nosferatu (Nosferatu, ein Symphonie des Grauens, 1922, por sua vez uma adaptação de Drácula, de Bram Stoker), do alemão F.W. Murnau, o vampiro é masculino. Em Camilla, de Sheridan le Fanu, trata-se de uma mulher, mas jovem e bela (e lésbica), assim como em certos poemas de Baudelaire e no quadro de Edvard Munch, Vampyr.
Já o doutor é mais diabólico, olhar fixo, olhos esbugalhados e um tanto zombador. Como o médico húngaro do livro sobre vampiros, ele é um “infame cúmplice”, mais detestável do que a criatura inumana a quem serve. Justino, o soldado de perna de pau, é outra alma danada. Fora alguma incerteza em relação à lógica do filme, a leis morais são bem claras e fixas. Ao lado dos possuídos, estão os inofensivos – os criados do velho falecido, dono da mansão no bosque -, embora se demore um pouco para saber “de que lado” está Gisèle. No caso de Léone, grande vítima da vampira, Dreyer mostra mais sua angústia do que o ato de vampirismo propriamente dito – ao qual apenas entrevemos: Léone deixa a cama e vai para o bosque. Logo em seguida, à encontraremos desfalecida, tendo Marguerite Chopin a seu lado.
E por falar em closes de rostos, a seqüência da metamorfose de Léone em vampiro é tão impressionante quanto a expressão do morto no enterro do duplo de Allan. Depois de ter sido morta, o rosto da vampira vai aparecer para o doutor e Justino, que estão próximos ao caixão do duplo. Eles fogem, mas é em vão, os dois irão morrer. Ao longo do filme, aqui e ali Marguerite Chopin lança alguns olhares um tanto vagos e ao mesmo tempo amedrontadores – o que é curioso, para uma personagem que o roteiro define como sendo cega; ao passo que o doutor é cego por sua escravidão em relação a ela.
Enquanto o caixão do duplo de Allan é fechado, ela olha para o rosto do morto pela pequena janela na tampa – podemos vê-la de frente, porque somos nós, os espectadores, do outro lado da tampa. Sobre esta cena, Tesson escreveu: “Ela inclina seu rosto cruel acima do vidro sob a luz da vela. Seus olhos cegos não podem ver o morto, mas ele pode vê-la” (SÉMOLUÉ, J. 2005: 97). No final das filmagens de O Vampiro Dreyer estava sob muita pressão e teve um colapso nervoso, e passou três meses internado. Situado nos arredores de Paris, curiosamente seu local de repouso se chamava Clínica Joana d’Arc **.
Presença na Ausência
Na opinião de Pino Bertelli, podemos reconhecer uma influência de Dreyer (a seqüência do ponto de vista do morto dentro do caixão) no primeiro longa-metragem de Pasolini, Accattone. Desajuste Social (Accattone, 1961). Mais especificamente, na cena em que Accattone assiste a seu próprio funeral (BERTELLI, P. 2001: 37). No filme de Pasolini, entretanto, empregasse um ângulo plano (Accattone olha para o cortejo à distância), enquanto em O Vampiro Dreyer empregou um ângulo baixo (contreplongée) (Allan olha para o mundo a partir do caixão onde está deitado). Bertelli não se expressa de maneira suficientemente clara, mas realmente parece de referir à seqüência do caixão. O problema é que ele a chama de “„subjetiva indireta livre‟ de Dreyer”, ao passo que Pasolini se refere à mesma seqüência (“o ponto de vista do morto”) como um exemplo de plano subjetivo clássico famoso ligado ao discurso direto (PASOLINI, P. P. 1965: 177). A não ser, é claro, que consideremos que o cadáver de Allan nos está “dizendo” alguma coisa, já que ao discurso indireto livre corresponderia um plano “subjetivo livre indireto” – quando a história nos é contada por intermédio de um personagem (AUMONT, J. 2004: 93).
Deixando a problemática pasoliniana de lado, Marc Vernet acredita que através desse “ponto de vista do morto” Dreyer representa o além – vale notar que Murnau nos mostra os caixões do morto-vivo em Nosferatu, inclusive nos mostra o vampiro dentro do caixão, mas não nos oferece o ponto de vista dele. Enquanto o caixão está sendo fechado podemos ver as laterais da pequena janela, mas quando ele é levado para fora a imagem perde essas bordas, é como se fosse nosso ponto de vista. Além disso, não vemos os carregadores, o que passa a impressão de que o caixão está se movendo sozinho – imagem entrecortada pelo ângulo baixo dentro do próprio caixão, mostrando o rosto de Allan com seus olhos esbugalhados apontados para a pequena janela. Referindo-se também a uma imobilidade dentro da mobilidade do passeio do caixão, Vernet comentou a respeito dessa seqüência: não é mais uma imagem, parece uma visão (VERNET, M. 1988: 49-53)
Apesar disso, em dois momentos durante seu “passeio”, o ângulo baixo é substituído em pelo menos dois momentos (tivemos acesso apenas à cópia alemã de O Vampiro), no primeiro vemos uma igreja, no segundo vemos o céu cheio de nuvens. Fora esses dois momentos, o cortejo fúnebre em plano baixo é interrompido várias vezes pela imagem do caixão em plano alto, focalizando a janelinha e o rosto de Allan do ponto de vista de quem está olhando a partir de fora. Com exceção desses três momentos, que rompem um padrão, Vernet vai dizer que esse plano baixo incorpora a própria sala de cinema onde o filme é projetado, engolindo um espectador siderado com a visão e “travado” na constatação de sua própria imobilidade (sentado na poltrona ao mesmo tempo em que “seu” olhar se move, enquanto o olhar de Allan está fixo, imóvel).
Com relação ao que “não se pode ver” na imagem, ao extracampo, Gilles Deleuze faz algumas considerações e as remete a uma dimensão espiritual em Dreyer, exemplificados em Joana d‟Arc e a protagonista de Gertrud. Segundo ele, o extracampo possui dois aspectos que se misturam: pode designar aquilo que está alhures, ao lado ou em volta; mas também atesta uma presença inquietante, um “alhures radical”. Considerando uma imagem enquanto um sistema fechado, cada um desses aspectos se sobrepõe ao outro segundo a natureza do “fio”. Quando mais grosso o fio, melhor o extracampo cumpre a primeira função (acrescentar espaço ao espaço).
“(...) Mas, quando o fio é tênue, ele não se contenta em reforçar o fechamento do quadro, ou em eliminar a relação com o exterior. Ele não garante, evidentemente, uma isolação completa do sistema relativamente fechado, o que seria impossível. Mas quanto mais tênue for, mais a duração desce no sistema como uma aranha, melhor o extracampo realiza sua outra função, que é a de introduzir o transespacial e o espiritual no sistema que nunca é perfeitamente fechado. Dreyer havia feito disto um método ascético: quanto mais a imagem é espacialmente fechada, reduzida até a duas dimensões mais ela está apta a se abrir para uma quarta dimensão, que é o tempo, e para uma quinta, que é o Espírito, a decisão espiritual de Joana e Gertrud” (DELEUZE, G. 1985: 29-30)
Cineasta de Cristo?
Os filmes que Dreyer realizava eram religiosos? De fato, Sémolué explicitou muitas e muitas relações diretas nessa direção. A pouca variação estilística e temática na obra de Dreyer facilita a identificação de elementos religiosos. Poderíamos mesmo nos referir à obra do dinamarquês como uma meditação moralista, da qual Sémolué conseguiu explicar muitas situações através de uma leitura de seus filmes a partir da Paixão de Cristo (SÉMOLUÉ, J. 1961: 150-161).
O segundo filme mudo de Dreyer, Páginas do Livro de Satã (Blade af Satans bog, 1920), se abre com um trecho da Paixão. Recriando uma cidade mediterrânea o cineasta evoca passagens do Novo Testamento: o
“Onde houver a possibilidade para uma renovação artística do cinema, de minha parte vejo apenas um caminho: abstração, a arte de apresentar a vida interior, não a exterior”
Carl Theodor Dreyer **
arrependimento de Maria Madalena, a Ceia (e o cálice), a traição de Judas (e o dinheiro em sua mão), a flagelação. Na opinião de Sémolué, o filme é mais uma ilustração do que propriamente uma meditação. A ênfase recai sobre a tentação e o desespero de Judas, sendo a missão redentora de Cristo deixada de lado. A missão seria objeto de outro filme, que não se realizou.
Sémolué se faz muitas perguntas: a visão de mundo de Dreyer implica expiação e redenção mais do que qualquer outra coisa? Os mistérios dolorosos contam mais do que os jubilosos ou gloriosos? A cruz está no centro do universo do cineasta dinamarquês? Sémolué acredita que as respostas sejam positivas, bastando uma breve avaliação de seus quatro filmes principais: A Paixão de Joana d’Arc, O Vampiro, Dias de Ira e A Palavra. O primeiro título fala por si mesmo, trata-se da paixão de Joana d‟Arc, mas do que de seu processo, de sua vocação mística mais do que de sua história. É também uma missão a tarefa de Allan no filme seguinte (que ostenta o enganoso subtítulo de A Estranha Aventura de Allan Gray). Ele escuta apelos vindos do além da mesma forma que Joana escuta vozes, um livro (sobre vampiros) sugere uma conduta assim como as Escrituras anunciam o Salvador.
Da mesma forma, as palavras do Dia de Ira pontuam as diferentes etapas do destino de Anne, que as ilustra. Trata-se de uma realização mística, e a Cruz surge no momento exato. Sémolué ressaltou que as referências à Paixão são evidentes em A Palavra. Johannes chega ao limite em nome de Cristo, e suas citações do Evangelho pontuam o filme: elas asseguram que, como aconteceu com Cristo, o sofrimento, a morte e a ressurreição de Inger foram estabelecidos por Deus. As provações do infortúnio e da morte são dois lados considerados parte da condição humana, sendo evidenciados por Dreyer. Para esses personagens, essas duas provações possuem o mesmo aspecto que para Cristo: o julgamento e o suplício.
“(...) Mais do que em termos morais, A Paixão de Joana d’Arc, Dias de Ira e A Palavra colocam o problema do Bem e do Mal em termos místicos e metafísicos. Este problema é claramente estabelecido em relação à escarnação de Cristo. Se a „justiça‟ é uma constante do pensamento de Dreyer, o julgamento é para ele uma obsessão estética. (...) Existe em Dreyer uma fascinação estética do processo”. (...) Todos os personagens de A Palavra, salvo pelas crianças e o jovem casal apaixonado, passam o tempo e se julgarem mutuamente. Da mesma forma, todos em Dias de Ira julgam Anne. (...) O ritos do processo são minuciosamente descritos, tanto em A Paixão de Joana d’Arc como em Dias de Ira. O desfecho de Dias de Ira, a cena final de A Palavra (e também o fim de O Vampiro), progridem seguindo as pompas de um tribunal. (...) Para além dessas referências ao julgamento enfrentado por Cristo, a obra de Dreyer, a partir de um plano puramente terrestre, mostra que todo julgamento, sobretudo em torno de questões religiosas, se arisca a ceder a uma vertigem de orgulho e prazer. Todo processo intolerante se volta contra si mesmo para se tornar processo de Intolerância” (Idem: 153-5)
Depois da fascinação com o julgamento, a fascinação com o suplício constitui outra tendência recorrente em Dreyer. Como diz o Evangelho, o servidor de Cristo será necessariamente perseguido tão ou mais do que Ele. No começo do filme, Joana d‟Arc se revolta contra os juízes, mas na segunda parte ela se deixa levar. Joana compreende o sentido de sua missão de redenção, como foi a de Cristo. Uma mística da redenção também está presente em O Vampiro. Não é por acaso, enfatiza Sémolué, que o suplício do doutor (morrendo no moinho) acompanha a fuga de Allan e Gisèle em direção à luz (no final do bosque, para além da fileira de árvores). O aniquilamento do ser maldito (o doutor) condiciona o progresso dos eleitos e, insiste ainda mais Sémolué, seria precipitado ver apenas um procedimento fora de moda na montagem alternada que exprime esse condicionamento - através da alternância entre as imagens do doutor morrendo soterrado pelos grãos e do casal fugindo para a luz.
“Contudo, não se trata aqui de um sacrifício voluntário. Pelo contrário, essa expressão caracteriza bem ao teste do enterro ao qual se submeteu, em sonho, Allan Gray: ele deve passar pelas portas da morte para se conduzir na direção da salvação que ama. Para além de uma história apavorante, O Vampiro propõe uma ascese mística” (Ibidem: 156)
Em A Palavra, o sofrimento de Johannes é sua loucura, a incompreensão e a hostilidade que ela provoca. Entoando, “Ai de ti, impostores, tu e tu, e tu”, Johannes segue a mesma tendência de Joana, que vai dizer: “sois vós os enviados pelo Diabo, para me fazer sofrer, e vós, e vós, e vós”. Ele falha em sua primeira tentativa de ressuscitar Inger. Então compreende que pecou por orgulho, por se imaginar um servidor tão grande quanto seu mestre (Johannes regressou louco da cidade onde havia estudado teologia com o intuito de se tornar pastor e passou a percorrer o campo dizendo-se Cristo e profetizando). Para ele, para os membros da família e para Peter o alfaiate, a morte dela constitui um teste torturante. Antes do milagre (a ressurreição de Inger), essa morte, essa Paixão em escala humana, liberta as consciências. Desta forma, conclui Sémolué, como na Paixão de Cristo, o sofrimento é a condição da salvação.
“Somos tentados a suspeitar de Dreyer numa espécie de complacência em relação à maldição da carne, essa carne pecadora que deseja orgulhosamente a felicidade. Marthe Herloff e Anne, mais nitidamente ainda do que Léone e Inger juntam-se a Joana na fraternidade do suplício, porém não na da santidade. Em Dias de Ira, a redenção, de esperança se torna sonho inacessível. (...) Em quase todos os filmes de Dreyer a morte triunfa. (...) Nos quatro grandes filmes [A Paixão de Joana d’Arc, O Vampiro, Dias de Ira e A Palavra], além do aspecto da tortura, ela se manifesta sob o aspecto do rito fúnebre” (Ibidem: 158-9)
Ainda assim, insistiu mais uma vez Sémolué, a obra de Dreyer pretende ser uma mensagem de vida, bondade e sacrifício assim como a Paixão de Cristo. Novamente Sémolué lança mão do que considera os quatro grandes filmes do cineasta. “Deus não odeia ninguém”, proclama Joana. Em O Vampiro, Allan, Gisèle e os criados representariam os esforços dos seres de boa vontade. Em A Palavra, o velho Borgen diz a Peter que para seus correligionários o cristianismo é aflição e morte, ao que ele responde: “para mim, é o florescimento da vida”. Inger, que encarne esse florescimento, mostra à Mikkel que ele possui “fé no coração, aquela da bondade”. Dias de Ira caminha na mesma direção. Embora Anne não seja exatamente boa, ela é quem defende a vida neste filme. Isso tudo Sémolué afirmou em 1961, mas em 2005 ele coloca a questão de outra forma. Embora mantenha sua posição, ele parece mais objetivo (SÉMOULUÉ, J. 2005: 161, 163-4). Como sugeriu Truffaut, a religiosidade dos temas de Dreyer impediu a percepção de seus reais objetivos? Afinal, se pergunta o próprio Sémolué, o fundamento dos filmes de Dreyer é religioso?
Salvo por A Paixão de Joana d’Arc e A Palavra, ele não tem certeza. Gertrud, último filme de Dreyer, parece apontar mais para um ato de esperança e amor do que uma apologia à fé. Os desafios de Joana d‟Arc, David, Anne e Johannes (de Dias de Ira), Inger, Mikkel e Peter (de A Palavra) e Gertrud, diferentes por suas circunstâncias e conseqüências, alcançam o mesmo resultado: despojar-se do orgulho pretensioso e das razões, verdadeiras ou falsas, para alcançá-lo.
Para Sémolué, os filmes de Dreyer apontam para o valor do sofrimento redentor enquanto forma de amor. Joana ama a Deus em função do mal que se abate sobre ela. Mesmo as vidas perdidas de Anne e Gertrud foram bem sucedidas na medida em que conhecem o amor, seus erros as conduziram a uma forma de conhecimento superior. Contudo, o esquema de Dreyer não é de tipo simplificador. Com exceção de O Vampiro, Sémolué afirma que não é possível separar os personagens entre vítimas puras e carrascos cruéis.
“Na obra de Dreyer o único problema verdadeiramente importante é a boa utilização da vida, portanto, do amor e da morte. Porque, como o amor, a morte revela a realidade. Seus filmes só poderiam ter sido realizados por um homem que tivesse „fé no coração, aquela da bondade‟, como disse Inger sobre Mikkel, e uma experiência de profunda meditação sobre o amor enquanto valor espiritual” (Ibidem: 165).
Antonin Artaud, poeta e louco que atuou como o padre que se interessa pelo destino de Joana em A Paixão de Joana d’Arc, falava de um pensamento impotente. Segundo Artaud, deveríamos nos afastar da idéia de um pensamento onipotente e nos servir da impotência do pensamento para acreditar na vida (e encontrar a identidade do pensamento e da vida): “penso na vida, todos os sistemas que eu poderia edificar jamais igualarão meus gritos de homem ocupado em refazer a vida...”. Deleuze chegou a se perguntar se Dreyer seria um Artaud que recobrou a razão, mas sempre graças ao absurdo. Deleuze também observou que que Martin Drouzy apontou uma crise psíquica, uma viagem esquizofrênica de Dreyer (DELEUZE, G. 1990: 205-6).
Mas Deleuze destacou a abordagem de Veronique Tacquin, que mostrou como a múmia (o autômato espiritual) está presente nos últimos filmes de Dreyer. O que já acontecia desde O Vampiro, onde a múmia aparece como força diabólica do mundo, a própria vampira (Marguerite Chopin). Mas também o próprio Allan, sonhando assistir se próprio enterro. Em A Palavra, foi o próprio pensamento que se mumificou, personificada em Inger, a quem Deleuze se refere como cataléptica (uma hipótese que Sémolué não aventou, ou não abraçou). Johannes, o louco da família, lhe devolve vida e amor porque deixou de ser louco – quer dizer, deixou de acreditoa r que significava outra coisa, outro mundo. Em Gertrud, que engendra novas relações entre cinema e pensamento, cujo desdobramente se dará com Europa 51 (1952), realizado pelo italiano Roberto Rossellini.
“Claro, desde o início o cinema teve uma relação especial com a crença. Há uma catolicidade no cinema (são muitos os diretores confessadamente católicos, até mesmo nos Estados Unidos, e os que não o são têm relações complexas com o catolicismo). No catolicismo não vemos uma grande mise en scène, assim como no cinema, um culto que substitui as catedrais, como já dizia Elie Faure? O cinema parece caber inteiramente na fórmula de Nietzsche: „em que somos ainda devotos‟. Ou melhor, desde os primórdios, o cristianismo e a revolução, a fé cristã e a fé revolucionária, foram os dois pólos que atraíram a arte das masssas. É que a imagem cinematográfica, diferente do teatro, mostrava-nos a vinculação do homem com o mundo. Por isso ela se desenvolve, seja no sentido da transformação do mundo pelo homem, seja na descoberta do mundo interior e superior que é o próprio homem... (...) O fato moderno é que já não acreditamos neste mundo. Nem mesmo nos acontecimentos que nos acontecem, o amor, a morte, como se nos dissessem respeito apenas pela metade. Não somos nós que fazemos cinema, é o mundo que nos aparece como um filme ruim. (...) É preciso que o cinema filme não, o mundo, mas a crença neste mundo, nosso único vínculo. Repetidas vezes já se perguntou qual a natureza da ilusão cinematográfica. Restituir-nos a crença no mundo: é este o poder do cinema moderno (quando deixa de ser ruim)” (Idem: 206-7)
REFERÊNCIAS
AUMONT, Jacques. As Teorias dos Cineastas. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 2004.
BAECQUE, Antoine de. Godard. Biographie. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2010.
BAZIN, André. O Cinema da Crueldade. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BERTELLI, Pino. Pier Paolo Pasolini. Il Cinema in Corpo. Atti Impuri di um Eretico. Roma: Edizioni Libreria Croce, 2001.
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A Imagem-Movimento. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense, 1985.
-----------------------. Cinema 2: Imagem-Tempo. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
ELSAESSER, Thomas. R.W. Fassbinder. Un Cinéaste d’Allemagne. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 2005.
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo Eretico. Milão: Garzanti, 2000 [1972]. O artigo Cinema de Poesia, constante desta coletânea está datado de 1965.
SÉMOLUÉ, Jean. “Douler, Noblesse Unique” ou La Passion Chez Carl Dreyer. In: ESTÈVE, Michel (org.). La Passion du Christ comme Thème Cinématographique. Paris: Études Cinématographiques, no 10-11, vol. II, Lettres Modernes, 1961.
----------------------. Carl Theodor Dreyer. Le Mystère du Vrai. Paris: Cahiers du Cinéma, 2005.
VERNET, Marc. Figures de l’Absence. Paris: Éditions de l‟Etoile, 1988.
** Citações sem data dos comentários de Dreyer no documentário Radiografia da Alma (Carl Th. Dreyer. My Metier, direção Torben Skjødt Jensen, 1995).