Faulkner escreveu uma vez que o verdadeiro problema do nosso tempo é já não existirem problemas espirituais.
O significado deste diagnóstico é mais cruel do que parece e diz-nos muito respeito. Que já não existam problemas espirituais, que estes já não sejam sentidos como algo de decisivo e de iniludível, gera, com efeito, uma angústia sem precedentes. Longe de nos libertar do mal-estar, o facto de os problemas da humanidade se terem tornado calculáveis, questões factuais urgentes e eventualmente complicadas, mas que, em última instância, requerem ser governadas e não vividas nem pensadas, é precisamente o que nos remete para uma especial angústia, tanto mais intolerável quanto mais, pelo menos na aparência, resolúvel. No seu diário, Fallot conta ter tido assim a experiência mais profunda da angústia diante da morte quando, depois de no restaurante ter pedido a sua sobremesa habitual, ouviu responder que, naquele dia, não havia. Naquele instante soube com absoluta certeza que daquela angústia jamais se libertaria, que esta o acompanharia para toda a vida.
Se o filme giallo é o paradigma de um mundo no qual tudo depende unicamente da solução de um problema factual, então, num universo já sem problemas espirituais, os homens ficam ansiosos e alheios perante a sua vida como as personagens de uma detective story diante do delito. E enquanto economia, medicina e tecnologias de toda a espécie (que são sempre, em última análise, técnicas de governo) assumem a direção dos destinos humanos, os problemas espirituais (e as técnicas que transmitiam a sua experiência: poesia, filosofia, arte) escorregam impercetivelmente para a esfera da cultura, ou seja, deixam de ser decisivos. | Porque hoje — é preciso lembrá-lo? — continuam a construir-se museus (e até, sem darem conta da contradição, “museus de arte contemporânea”), auditórios e teatros, mas é claro que tudo isso já não concerne às questões que decidem acerca da nossa possibilidade de viver e ser felizes. O assim chamado “espírito”, que não era senão o nome que os homens davam ao ponto de maior intensidade em cada domínio da sua vida, torna-se assim uma esfera autónoma e separada, tudo somado, dispensável e frequentemente aborrecida. Aquilo pelo qual cada coisa vale a pena ser vivida transforma-se numa distração cada vez mais manchada pela dúvida de que, talvez, “não vale a pena”, que possa viver-se apenas procurando na internet uma outra vida e um rosto que parece mais verdadeiro, precisamente por ser constitutivamente marcado pela falsidade e pela máscara. Significa isto, como alguns bem pensantes aconselham, que se deva voltar às “coisas do espírito” (expressão ainda mais contraditória que “museu de arte contemporânea”) como se poesia, arte e filosofia estivessem à espera, separadas e acessíveis, algures? Ou antes, como sugere Humphrey Bogart no final de Relíquia Macabra, que verdadeiramente espiritual e poética é a consciência de que as coisas e os factos a que estamos irrevogavelmente remetidos são apenas, como a estatueta do falcão, “a matéria de que são feitos os nossos sonhos”? Que, no nosso errar por entre os factos e as coisas, não devemos esquecer a recordação daquele ponto de intensidade (espiritual, ou seja, evanescente e subtil) que decide a cada vez o nosso desejo e a nossa forma de vida? |