“A extrema coerência dos filmes de Jean-Claude Rousseau impressiona o espectador pelo seu todo. Uma janela. Uma
paisagem. O cineasta no seu quarto de hotel. O auto-retrato no espelho. A fuga em perspectiva de uma rua ou de uma
avenida. As intermitências da luz. É pela eleição de um dado número de constrangimentos formais - um repertório fixo
de motivos, a inscrição geográfica, a passagem do interior ao exterior, o princípio musical da variação - que o cineasta
institui o local, o lugar, de forma mais exacta, no sentido físico, o de um acontecimento possível, ainda que secreto,
mantido na margem, retido, no limite do visível. Esse ritual de preparar o enquadramento, feito com grande precisão,
meticuloso e frágil, acaba por produzir em nós, sem que nos apercebamos, e ao vermos o regresso regular dos motivos,
um sentimento agradável de suspensão. Aguardamos uma vez mais a visão da janela, a paisagem soprada na luz, o
rumor persistente que vem do exterior, o olhar do cineasta surpreso na penumbra, o empoeirar colorido do ar, a entrada
em campo do cineasta que vem habitar o lugar do seu enquadramento e o tempo dos planos, bem como tantos outros
acontecimentos previsíveis e inesperados. Esta tensão fértil entre a sobriedade do dispositivo, a sua tenuidade, o seu
carácter fechado e a riqueza da sensação produzida, já me tinha impressionado nas duas longas metragens de Jean-
Claude Rousseau, Les Antiquités de Rome e La vallée close. Ao revelar-nos o filme à medida que se faz, ao pôr a nu o
processo (as bobines em Super 8 são colocadas de uma ponta à outra, sem montagem, com a película em branco que as
separa), o cineasta destabiliza a própria matéria do filme, a sua composição por vir, a distância entre o registo em bruto
do plano e a sua relação imprevista ou mesmo ao acaso com os planos que lhe sucederão (lembramo-nos da referência
à física de Lucrécia em La vallée close e da concepção da montagem expressa por Jean-Claude Rousseau, como um
colocar em órbita de átomos desligados que vêm formar uma constelação).” (Érik Bullot)
Acerca de KEEP IN TOUCH
“Keep in touch explora o tempo da espera. O cineasta está sentado a uma mesa num quarto em Nova Iorque com
uma folha branca à sua frente como se fosse escrever uma carta. Acende um candeeiro de mesa, folheia uma revista
erótica. Ouvimos diversas mensagens num atendedor telefónico: sussurros pontuados por ‘love, love, love’; passando
do francês ao inglês, uma voz evoca o regresso a um apartamento: outra, em inglês, surpreendida pelo atendedor,
solicita sem convicção um próximo encontro. O filme é acerca desta vaga, acerca do lapso entre o encontro e a espera.
O barulho insistente da cidade é perceptível, apenas interrompido pela sirene de uma ambulância. Do enquadramento
rígido da janela aos planos fixos das avenidas cobertas de neve, do movimento Browniano dos patinadores à
lenta passagem das nuvens sobre o cais, um traçado formal parece ordenar o fluxo dos elementos, prefigurando a
composição geométrica de Les Antiquités de Rome. Keep in Touch delineia um caminho solitário, escarpado, circular.
Trajecto de solidão na espera de um contacto deixado em suspenso, por resolver, este filme aparenta-se a uma estação,
a um sentido de pausa e prece. No fim do filme, o cineasta está outra vez face à sua folha branca. A carta ainda não está
escrita. E as três palavras manuscritas que se seguem, “keep in touch”, em jeito de genérico, parecem assinar, uma
vez mais, uma carta que ficou em branco. Os filme de Jean-Claude Rousseau são, nesta perspectiva e literalmente,
missivas ou cartas filmadas.” (Érik Bullot)
30 OUT | 22:00 | SALA LUÍS DE PINA
Keep in Touch de Jean-Claude Rousseau, 1987, 16mm, 25’
Les Antiquités de Rome de Jean-Claude Rousseau, 1984-89, 16mm, 105’
Keep in Touch, Jean-Claude Rousseau © Colecção Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema
CONTAR O TEMPO
Acerca de LES ANTIQUITÉS DE ROME
Depois de Venise n’existe pas e de Keep in touch, Jean-Claude Rousseau passou às longas-metragens. Esta mudança de
formato fez-se de acordo com um modo operativo particular relacionado com o tipo de construção das curtas e médias
metragens. Em Rousseau, a unidade elementar é sempre constituída pela bobine de Super 8. Um filme organiza-se por
aproximação e acorde, no sentido musical, entre diferentes bobines. “Não há montagem. Há um juntar de pontas, mas
cada bobine de Super 8 permanece integral, intacta de uma ponta à outra. Muitas vezes não surge na ordem por que
foi filmada o que não diz respeito às que ainda restam. (…) Quando duas bobines se completam, não podemos mais
separá-las ou mexer nisso”. Esse jogo de lego unitário forma a estrutura evidente dos primeiros filmes. Na sua primeira
longa, Les Antiquités de Rome, esta arquitectura desdobra-se numa découpage em várias partes – sete como os dias da
semana ou as colinas de Roma. Esta découpage conduz a lógica anterior ao nível seguinte. Cada sequência acorda de
novo com a que se lhe segue tal como com a que lhe precedeu. As longas metragens de Rousseau são organismos mais
complexos do que as suas curtas mas respeitam as mesmas leis biológicas. Ganham apenas em espessura temporal
(são necessárias mais viagens, realizadas em diversos anos) e em extensão espacial (mais quartos em mais bairros).
Les Antiquités de Rome, terminado em 1989, testemunha o percurso percorrido depois da pequena música de câmara
que foi Venise n’existe pas, constituindo uma espécie de complemento orquestral. A questão do cliché é retomada com
uma força renovada. O conjunto do filme surge de facto organizado à maneira de um guia turístico, em função de vistas
célebres – “o Coliseu”, “o Arco de Constantino”, “o Circo Máximo”, etc. Mas onde Venise n’existe pas permanecia
ainda na clausura protectora do quarto e procurava opor um modo de representação a outro, Les Antiquités de Rome
passa incessantemente do interior ao exterior, propondo ao espectador um contrato mais complexo e subtil. Em cinco
anos, Rousseau ganhou a confiança suficiente nos seus próprios meios para acolher o mundo tal como este se dá a
ver, sabendo entretanto contrariar a perspectiva habitual. À partida, a citação de Joachim du Bellay indica as regras
desta visão paradoxal: Nouveau venu qui cherches Rome en Rome / Et rien de Rome en Rome s’aperçois. Veneza não
existia e Roma não pára de desapontar. O princípio destas decepções sucessivas não é claramente formulado, mas
deixa adivinhar-se facilmente ao longo dos primeiros capítulos. Enquadradas pelo cineasta, “a Rotunda”, “a Pirâmide”
e o “Fórum de Trajano” transformam-se um a um num círculo, num triângulo e num quadrado. Se desaparecessem
enquanto monumentos também desapareceriam como formas geométricas simples. Como a Veneza dos vedute deu
lugar a uma outra Veneza vertical e lacunar, a Roma marmórea torna-se aqui numa nova Roma composta de linhas
entrecruzadas. “É uma relação entre as linhas que faz com que ao mesmo tempo aquilo que vemos se torne plano, não
estando já de todo na perspectiva e provocando uma profundidade sem limites.” Como contraponto a este trabalho
exterior de depuração geométrica, as cenas interiores não cessam de se multiplicar até ao virtuosismo dos planos do
espelho, que funcionam à vez como portas falsas e como verdadeiras aberturas. Em Rousseau, os trompe-l’oeil servem
sobretudo para esclarecer o olhar, impondo-lhe a superfície do ecrã como única realidade. Em Les Antiquités de Rome,
espelhos e linhas, interior e exterior, conjuram o nivelar generalizado do mundo, “necessário à passagem”. Mas essa
passagem não se efectua sozinha. Pela primeira vez há um encontro. É o que indica, à partida, a narração repetida
em loop pela voz do realizador: “Começou a chover, era como se fosse o fim do dia, o céu obscurecido, entrámos na
igreja e estávamos no centro da cidade… Não era uma igreja e através da cúpula aberta, esburacada, caía a chuva.”
E no entanto isso tarda a entrar em campo. Entretanto, de costas voltadas, no quadrado negro do Fórum de Trajano,
desaparece da imagem, seguido logo após pelo realizador. Esta aparição furtiva não vale apenas como uma ilustração
literal da tese cara a Rousseau do enquadramento-janela. (“Entrar no enquadramento é fazer a travessia. É mais
desaparecer do que aparecer.”) Prefigura igualmente a saída do filme deste recém-chegado. Um dos traços específicos
das longas metragens de Rousseau é que não se constroem directamente sobre um fundo de ausência, mas através
de um esquema de perda, mais dramático. Quando o cineasta retoma a palavra, esta perda há muito efectiva no ecrã,
formula-se claramente: “Páras em frente à estátua. A tua solidão é absoluta. A pedra imaginava o homem. Regressas
parecido contigo mesmo.” E portanto, em Les Antiquités de Rome há algo que não está ainda completamente resolvido
no que diz respeito a esse indivíduo sobre-numerário e quanto à sua inserção fugaz no curso dos planos. Uma cena
numa casa de banho, descobrindo um torso desnudado e um rápido perfil é assim retomada tardiamente em aceleração
numa sequência de “sonho” que constitui um subcapítulo de estatuto incerto, como se o cineasta tivesse sentido a
necessidade de desconstruir a estranheza plena transportada por este corpo imprevisto. Há em Les Antiquités de Rome
uma fuga fantástica para tentar encontrar a resposta visual adequada à figura demoníaca do outro. Este salto final
difere em profundidade do equilíbrio a que nos habituou o realizador, a essa emocionante “libertação dos elementos no
limite do enquadramento”. É mais oposta do que concordante com o resto do filme. Seria necessário esperar mais seis
anos e uma segunda longa metragem para que Rousseau encontre um novo sistema capaz de integrar plenamente a
presença e a perda da pessoa amada.
(Patrice Blouin, La déconvenue. Notes sur l’oeuvre de Jean-Claude Rousseau)