FOTOGRAFIA E MEMÓRIA
A CENA AUSENTEMarisa Strelczenia(
FONTE: http://www.studium.iar.unicamp.br/20/06.html?ppal=index.html)
O mito conta que na origem da imagem encontra-se a ausência, a nostalgia, a separação dos que se amam. Relata-se a história da filha de um oleiro que estava enamorada de um jovem.
Um dia, o jovem teve que partir em uma longa viagem. Na cena de despedida, os dois amantes estão numa casa iluminada por uma lâmpada que projeta as suas sombras numa parede. Para conjurar a futura ausência do seu amante e conservar um vestígio físico de sua presença, a moça com um carvão percorre o contorno, pinta a silhueta do outro que ali se projeta. Nesse momento último e resplandescente, e a fim de abolir o tempo, a moça "tenta fixar a sombra daquele que está ainda ali mas que logo estará ausente".[1]
Assim, segundo o mito, a categoria fundadora da imagem não é a necessidade de figurar ou de imitar algo que existe mas sim a necessidade de prolongar o contato, a proximidade, o desejo de que o vínculo persista. Inclusive e fundamentalmente quando o adeus é definitivo. Regis Debray assinala que a imagem nasce da morte, como negação do nada e para prolongar a vida, de tal forma que entre o representado e sua representação haja uma transferência de alma. A imagem não é uma simples metáfora do desaparecido mas sim “una metonimia real, una prolongación sublimada pero todavía física de su carne”[i].[2]
A fotografia, imagem técnica, produto da modernidade, recupera essa carga mítica da origem. Walter Benjamín já apontava o paradoxo: “la técnica más exacta puede dar a sus productos un valor mágico que una imagen pintada ya nunca poseerá para nosotros”[ii].[3] Aqueles que olhavam as primeiras fotos participavam de um mistério: crêem – como os que, ajoelhados em frente a uma figura religiosa, crêem que o santo os vê e escuta seus rogos – que os pequenos, minúsculos rostos fotografados podiam olhá-los a partir da imagem. A fotografia cumpre, como as primeiras imagens, a função de meio entre o que é e o que foi, entre os que ainda são e os que já não estão. Nas palavras de Roland Barthes: “La foto es literalmente una emanación del referente. De un cuerpo real, que se encontraba allí, han salido unas radiaciones que vienen a impresionarme a mí, que me encuentro aquí (…); la foto del ser desaparecido viene a impresionarme al igual que los rayos diferidos de una estrella. Una especie de cordón umbilical une el cuerpo de la cosa fotografiada a mi mirada: la luz, aunque impalpable, es aquí un medio carnal, una piel que comparto con aquel o aquella que han sido fotografiados”[iii].[4]
A fotografia leva ao universo iconográfico uma imagem precisa, definida, mas que em essência é um signo emanado diretamente do referente. Testemunha a presença real no passado do corpo ao qual faz referência. Nenhuma outra imagem colaborou tanto para conjurar a ausência e cumprir tão cabalmente com o mito de origem. Toda fotografia afirma que o que nela vemos encontrou-se lá, esteve lá mas foi imediatamente separado. É assim que Barthes encontra o noema da fotografia ao certificar que isto (o referente) foi.
A faculdade de atestar o que foi, de reter o que se desvanece é a memória. A memória é constitutiva da condição humana: desde sempre temos nos ocupado em produzir sinais que permaneçam mais além do futuro, que sirvam de marca da própria existência e que lhe dêem sentido.
Por oposição, quando se deseja contar a perda das qualidades do humano se menciona a impossibilidade de recordar. Na Odisséia se relata a viagem de Ulisses por um mundo qualificado como subumano. Ulisses chega ao país do esquecimento, onde vivem os lotófagos, que se alimentam do lodo. Assegura Jean-Pierre Vernant que “quienes comen del loto dejan de vivir como los hombres, con el recuerdo de su pasado y la conciencia de quienes son”[iv].[5] Também Circe, a feiticeira, quando transforma a tripulação de Ulisses em porcos e os separa do mundo humano, os bestializa porque “os faz esquecer seu passado”. “Tanto nuestra noción de lo real como la esencia de nuestra identidad individual dependen de la memoria. No somos sino memoria”[v].[6]
A vida é em essência movimento e transformação. Mas apenas podemos tomar consciência do movimento em comparação com o que permanece imóvel. Enquanto Ulisses viajava e punha em risco sua identidade, em Ítaca, Penélope esperava. A viagem de Ulisses adquire suas verdadeiras proporções na espera de Penélope. A Odisséia se completa com o reencontro, com o regresso ao ponto de partida. Ulisses pode se perder porque há alguém que se lembra dele tal como é e não o esquece.
A memória vincula o passado ao presente, e dessa maneira produz uma dupla operação: a de abolir o tempo (porque o que foi permanece, é memorável) e ao mesmo tempo a de representá-lo (porque ao unir o antes com o agora podemos ver a transformação). O imutável é o que não tem tempo.
A mesma operação é a que a fotografia realiza. A brusca detenção, o corte do clique, a redução a um instante, põem em evidência o excluído, ou seja, a continuidade, o tempo que flui como o rio. Quem olha uma fotografia se vê obrigado a valorizar o salto entre o momento em que o objeto posou e o presente em que se contempla a imagem.
A memória enlaça o atual com o passado e a ela recorremos para rastrear a origem das coisas mas também para decifrar de alguma maneira o que virá. Assim também o casual fragmento de tempo fotografado é capaz de conter o antes e depois. Walter Benjamin assegura que frente a uma fotografia o espectador “se siente irresistiblemente forzado a encontrar el lugar inaparente en el cual en una determinada manera de ser de ese minuto que pasó hace ya tiempo anida hoy el futuro y tan elocuentemente que, mirando hacia atrás, podremos descubrirlo”[vi].[7]
[*] Ensaio de Marisa Strelczenia sobre a série de imagens "Arqueología de la Ausencia", de Lucila Quieto
Comunicação apresentada nas II Jornadas de Fotografía y Sociedad, Facultad de Ciencias Sociales (UBA), Setembro de 2001. Publicada em CD-Rom.
Publicada em Ojos Crueles, temas de fotografía y sociedad Nº1, Buenos Aires, octubre de 2004-marzo de 2005.
[1] Philippe Dubois, El Acto Fotográfico. De la representación a la recepción, Barcelona, Paidós, 1994, 2da. Edición. (Na relação com o mito da origem da imagen, Dubois cita a fábula narrada por Plinio em sua Historia Naturalis).
[2] Regis Debray, Vida, y Muerte de la Imagen. Historia de la Mirada en Occidente, Barcelona, Paidós, 1992.
[3] Walter Benjamín, Discursos Interrumpidos I, Madrid, Editorial Taurus, 1987.
[4] Roland Barthes, La Cámara Lúcida. Nota sobre la fotografía, Barcelona, Paidós, 1990, 1ra. Edición.
[5] Jean-Pierre Vernant, Érase una vez… El Universo, los dioses, los Hombres, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1999.
[6] Joan Fontcuberta, El Beso de Judas, Fotografía y Verdad, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, 1997.
[7] Walter Benjamin, op. cit.
[i] “uma metonímia real, um prolongamento sublimado mas ainda físico de sua carne” (NT)
[ii] “a técnica mais exata pode dar a seus produtos um valor mágico que uma imagem pintada já nunca possuirá para nós”(NT)
[iii] “A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que se encontrava ali, saíram umas radiações que vêm impressionar a mim, que me encontro aqui (…); a foto do ser desaparecido vem impressionar-me como os raios emanados de uma estrela. Uma espécie de cordão umbilical une o corpo da coisa fotografada a meu olhar: a luz, ainda que impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que compartilho com aquele ou aquela que foram fotografados”. (NT)
[iv] “os que comem lodo deixam de viver como homens, com a lembrança de seu passado e a consciência de quem são” (NT)
[v] “Tanto nossa noção do real como a essência de nossa identidade individual dependem da memória. Não somos nada além de memória” (NT)
[vi] “sente-se irresistivelmente forçado a encontrar o lugar não aparente no qual em uma determinada maneira de ser desse minuto que passou faz já tempo aninha-se hoje o futuro e tão eloqüentemente que, olhando para trás, poderemos descobri-lo” (NT)
DoxDoxDox
sábado, 27 de junho de 2009